Cronologia de um inferno havaiano: como os incêndios devastaram Lahaina em Maui

A 8 de Agosto, milhares de pessoas em Maui passaram por um horror que jamais imaginariam viver.

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O fogo chegou rápido e destruiu grande parte da cidade de Lahaina ETIENNE LAURENT/EPA
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Já se tornou o incêndio mais mortífero da história moderna dos Estados, mas ainda pouco se sabe sobre o fogo devastador da ilha havaiana de Maui que destruiu grande parte da cidade de Lahaina na semana passada. Quantas pessoas morreram? O que causou as chamas? Até que ponto as alterações climáticas contribuíram para os incêndios?

O que se sabe é que a 8 de Agosto milhares de pessoas em Maui passaram por um horror que jamais imaginariam viver.

Manhã: ventos uivantes, seguido por um incêndio de mato

Lisa Vorpahl, funcionária de um banco, acordou com o som de alguém na sua varanda. Eram três da manhã de terça-feira quando olhou pela janela do quarto – uma encosta seca e relvada com vista para o seu pedaço de paraíso tropical – e percebeu que era apenas o vento.

Alexa Caskey também não conseguia dormir. Na quinta onde cultivava inhame e fruta-pão para o seu restaurante à base de plantas, ouvia as rajadas que abanavam a porta da garagem e acabaram por derrubar a árvore-orquídea de Hong Kong.

A fotógrafa Rachael Zimmerman acordou antes do amanhecer no seu apartamento na Front Street, a avenida à beira-mar de Lahaina, repleta de restaurantes e lojas de surf, com os uivos do vento que sacudias as redes de protecção das janelas.

Naquela noite agitada, se houve algum aviso de que o Havai estava prestes a enfrentar um dos desastres naturais mais terríveis e mortais da sua história, foi apenas o do vento.

Durante dois dias, os funcionários do Serviço Meteorológico Nacional em Honolulu tinham estado a emitir alertas agourentos sobre fortes rajadas de vento de leste, impulsionadas pelo furacão Dora que passava a 500 milhas [mais de 800 km] a sul. Atingiram Maui numa altura em que grande parte da ilha tropical passava por uma grande seca, nomeadamente a zona que costuma ser mais seca, no Ocidente, e que engloba Lahaina.

Quando Lisa Vorpahl voltou a acordar, sentiu o cheiro a fumo. A electricidade tinha sido cortada.

Começara um incêndio na relva seca perto da sua casa, na estrada Lahainaluna, numa encosta a leste da auto-estrada que contorna o centro da cidade. Postes de electricidade caíram no bairro, cabos rebentaram – o que levou as pessoas do bairro a questionar-se mais tarde se não teria sido isso a começar o incêndio.

As autoridades do condado de Maui receberam os primeiros relatórios do incêndio às 6h37 da manhã, e pouco depois a polícia estava a circular no seu bairro, usando megafones para pedir às pessoas que deixassem as suas casas. Usando uma boca de incêndio próxima, os bombeiros apagaram as chamas.

Lisa Vorpahl não sentia pânico. Incêndios aconteciam regularmente. O incêndio era pequeno e não parecia ameaçador enquanto ela e o marido, Eddy, passavam de carro.

É o Havai”, disse. Ninguém pensou muito nisso.

Passaram algumas horas no apartamento da filha, mas voltaram para casa depois de, às 9h55, o condado de Maui ter emitido um alerta de que o incêndio de mato estava 100% controlado.

Assim parecia para Eddy.

“Não se passava nada. Estavam lá dois carros de bombeiros. Já estavam a arrumar as coisas”, disse. “Parecia tudo completamente bem.”

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Jeff Melichar/TMX/via REUTERS

Tarde: chamas rápidas, seguidas de “fumo sufocante”

Lahaina encontra-se na vertente ocidental de Maui, uma cidade histórica delimitada por praias de areia branca, aos pés do antigo vulcão Pu'u Kukui. Na maioria dos dias, é um símbolo perfeito de felicidade tropical. No entanto, o incêndio da madrugada tinha sido agourento. E Mark Stefl, um ladrilhador, tinha razões para estar cauteloso.

Ele vivia mais abaixo na colina, na estrada Lahainaluna, numa casa que reconstruiu depois de outro incêndio a ter destruído há cinco anos. Tinha ouvido que o fogo da madrugada estava apagado. Por volta das 14h30, ouviu a mulher, Michele, gritar: Meu Deus!

O incêndio reacendera-se mais abaixo na encosta e o vento empurrara as chamas em direcção a Lahaina.

Ainda estava a algumas centenas de metros de distância e Mark tentou tranquilizar Michele, dizendo-lhe que os bombeiros lidariam com a questão. Mas a rapidez com que o incêndio avançava não se comparava com nada do que tinha visto antes.

Em minutos, havia uma parede de fogo a 30 metros da casa, disse ele.

De cima, o ar seco devido a um sistema de alta pressão soprava com força pelas encostas do vulcão, lançando rajadas ferozes em direcção à cidade, espalhando cascalho e arrancando telhas dos telhados. O pior cenário antevisto por alguns especialistas em situações de emergência.

O casal correu para juntar os seus cães e gatos. Poppy, um cão de resgate, ficou para trás no meio do caos. Mark Stefl acelerou a sua carrinha quando as chamas já lambiam um dos lados da sua casa.

“Rezava a Deus para não morrermos”, disse.

Não muito longe dali, na rua Komo Mai, Anastasiya Arcangel Pang viu o fogo ao longe a avançar. Esta natural de Lahaina e a sua família – a avó, a mãe, vários primos – vivem a poucos quarteirões uns dos outros e todos decidiram sair.

Pang, com 31 anos, enviou uma mensagem ao marido, que tinha saído cedo nesse dia para trabalhar noutra cidade, para saber o que ele queria que ela metesse na mala. Ele respondeu oito minutos depois, mas nessa altura o quintal já estava em chamas e ela fugiu apressadamente ao lado de uma caravana de familiares.

À medida que se afastava com os cães, nas mãos algumas roupas que tinha conseguido agarrar, ouvia o som dos tanques de propano a explodir pela rua, uns a seguir aos outros.

Quando olhei para trás, tudo o que vi foi fumo negro”, afirmou. Foi nesse momento que soube: se voltarmos, estamos a voltar para nada.

Nesse momento, essa mesma nuvem negra começou a sufocar Lahaina.

A cidade de 12 mil habitantes tinha sido a capital do antigo reino do Havai e um entreposto comercial para os navios baleeiros do século XIX. Lahaina possuía a casa mais antiga de Maui, o Museu Baldwin Home, e uma preciosa figueira-da-índia que cresceu num pátio junto ao mar durante 150 anos.

Os turistas chegavam para fazer surf, mas nos dias de hoje os turistas vêm para fazer surf ou mergulho, apanhar sol e andar de tirolesa.

Caresse Carson, de 41 anos, atendia muitos desses visitantes no Captain Jack's Island Grill. Depois de quase duas décadas em Lahaina, valorizava a sua rica história, gostava de se imaginar a seguir os passos de Mark Twain, que tinha visitado o Pioneer Inn, situado do outro lado da rua do Captain Jack's.

Mesmo com a electricidade cortada, Carson apresentara-se para trabalhar naquela tarde para ajudar a evitar que a comida se estragasse. No trajecto, passou pela casa do seu chefe, Sam, e viu como um pedaço do telhado, do tamanho da sua carrinha, era arrancada pelo vento.

Enquanto ela e Sam transportavam sacos de gelo, o fumo negro surgiu na cidade.

Apareceu instantaneamente.

De repente, começou a envolver o edifício”, contou Carson. Ficou completamente negro. Não se conseguia ver nem um centímetro à nossa frente. Era um fumo sufocante.

Zimmerman, a fotógrafa, também estava no centro da cidade. Agarrou um pequeno cofre com os seus discos rígidos, passaporte e algum dinheiro. Além do computador, comida para a cadela, Zya, e algumas camisas.

Às 15h38, já temendo o pior, tirou algumas fotos apressadas dos quartos, roupeiros e mobília – pensando que poderia precisar das imagens para pedir a indemnização ao seguro.

Meia hora depois, ligou para os pais no Colorado, dizendo que ela e a companheira, Nicole, estavam presas no trânsito com o fogo a aproximar-se e não sabiam se conseguiriam escapar. Encorajaram-na a continuar a avançar mantendo-se perto do mar.

Carson também estava a tentar sair de Lahaina na sua carrinha Nissan. Brasas incandescentes choviam pela janela aberta, perfurando a manta no banco de trás.

Havia engarrafamento no centro da cidade, enquanto pessoas em pânico tentavam escapar e outras abandonavam os seus veículos. Carson viu um casal a correr descalço pela rua, empurrando um carrinho de bebé. Viu pessoas e mais pessoas a correr pelas ruas até chegarem ao muro junto ao mar e lançarem-se ao oceano Pacífico.

Carson gravou um vídeo no seu telemóvel enquanto conduzia, procurando uma saída. Os cabos eléctricos e as palmeiras agitavam-se violentamente. A determinada altura chegou a uma estrada bloqueada por um poste caído.

Não sei se vou conseguir, gravou-se a dizer. Não sei o que vou fazer. Olha para isto. É tudo destroços queimados. O fogo está a ficar cada vez mais perto.

Eram 16h25 quando viu o seu amigo Kaleo ser atingido na cabeça por um destroço.

Entra no carro, gritou-lhe. Entra no meu carro.

Ele estava ofegante.

Oh, meu Deus”, exclamou ela.

O ar estava negro. Carson estava desorientada. Uma luz emergiu no céu.

Olha para a lua”, disse-lhe. Olha para a maldita lua, pá.

Eram 16h30. Ele respondeu-lhe que era o sol.

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Mason Jarvi/Handout via REUTERS

Tarde: fugindo da tempestade de fogo

Não houve sirenes de emergência. Nenhuma operação de retirada organizada. Poucas instruções sobre como proceder. Apenas uma busca desesperada pela sobrevivência.

Annelise Cochran, uma jovem de 30 anos que trabalhava para uma organização sem fins lucrativos de conservação dos oceanos, não conseguiu sair de carro e, como o edifício ao lado estava em chamas, correu em direcção à água.

Viu o seu vizinho, Freeman, de 86 anos, a lutar para conseguir andar. Outra vizinha, Edna, estava com ele. Os três escalaram a barreira rochosa juntos para fugir das chamas.

Passaram horas na água e nas rochas, contou Cochran, tentando manter-se afastados das brasas voadoras e do fumo sufocante. Carros abandonados na Front Street começaram a explodir. Ondas de calor e fumos tóxicos chegaram ao mar.

Quando começavam a sentir-se perigosamente frios, moviam-se em direcção ao fogo. Cochran viu horrorizada pessoas que se agarravam aos destroços e flutuavam para longe da costa.

As pessoas preferiam escolher deixar-se levar”, disse.

Nesse momento, Kevin Foley, de 42 anos, ficou preso no estacionamento do supermercado Safeway, com as chamas a aproximarem-se de vários lados. Estava a caminho do seu turno de barman no Longhi's Kaanapali, um restaurante italiano no Marriott's Maui Ocean Club, quando o fumo o forçou a sair do autocarro. Voltou a pé para o sítio onde deixara a bicicleta.

Preocupado com os seus colegas, Foley tentou voltar a casa de bicicleta, mas estava constantemente a encontrar obstáculos. Enquanto se movia, gravava em vídeo o fogo à sua volta. Quando a escuridão caiu, o céu ficou ameaçadoramente laranja. Viu postes de electricidade em chamas a lançar chuveiros de brasas para o pavimento. Viu o fogo consumir um prédio de apartamentos de três andares na rua Keawe.

Ia contando o que via, enquanto andava às voltas. Quando as faíscas atingiram a base de uma palmeira que começou a arder, narrou: “É assim que começa. Uma pequena faísca atinge uma área e, de um momento para o outro, ela envolve tudo desta maneira.

Pouco depois da meia-noite, um homem cambaleou de uma das casas em chamas, em direcção a um posto de combustíveis da Shell. As calças estavam a arder. A pele do rosto estava a sair. Desmaiou no meio da rua. Foley encorajou o homem a levantar-se e levou-o em direcção ao Safeway e foi procurar ajuda até encontrar um polícia.

A polícia de Maui e os bombeiros estiveram durante todo o dia a tentar salvar vidas e a ajudar a retirar pessoas. Mas o incêndio estava a ser avassalador.

O polícia não podia fazer nada por ele”, recordou Foley. Só lhe podia dar água.

Foley e algumas pessoas entraram no centro comercial Lahaina Cannery Mall – ligado ao supermercado – para tentar escapar do fumo e esperar pela noite.

De vez em quando, saía para ver se o Safeway já tinha começado a arder.

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Dustin Johnson/Handout via REUTERS

Na água escura e fria de Lahaina, na noite de terça-feira, Cochran e a vizinha Edna agarravam-se uma à outra, ambas a tremer e a lutar para respirar através do fumo. Cochran sentia-se a desmaiar.

Tentando manter-se acordadas, falaram sobre as famílias e prometeram uma à outra que iriam conseguir sobreviver.

A dado momento, Cochran chamou por Freeman, o vizinho idoso, que estava um pouco mais abaixo, na praia rochosa, e perguntou como estava.

Ele sorriu e com a mão fez shaka, o gesto que é um sinal de descontracção, para indicar que estava bem. Mais tarde, viu-o encostado à parede, imóvel. Está convencido que ele terá morrido por causa do fumo.

Por volta da meia-noite, os bombeiros resgataram Cochran e várias dezenas de outras pessoas da água. Tem passado as últimas noites em abrigos. O corpo está coberto de nódoas negras e lacerações; os pés e o rosto estão queimados.

Sinto-me abençoada por estar viva”, afirma.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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