Afinal o que importa é não ter medo: criatividade, risco, erro

No campo das artes é vital persistir na apologia das subjectividades e da diversidade, com primazia ao risco e suas tonalidades criativas como possibilidades de amanhã.

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Vivemos, neste pós-pandemia, um período de inegável vitalidade e prolixidade criativas em Portugal. Daí a importância de garantir tempo, contextos e recursos para as várias dimensões dos processos de inventividade: questionar, investigar, experimentar, partilhar. Para escavar o risco, para errar melhor.

Existe um ecossistema activo e fértil de entidades (sobretudo associativas, mas também públicas e empresariais) que dinamiza, em modelos, abordagens e condições diversos, residências artísticas no nosso país, o qual urge conhecer, mapear, conectar, amplificar, apoiar de modo mais direccionado e empoderar – o que também contribuirá, por várias vias, para que os projectos criativos possam apresentar, tendencialmente, maiores índices de consistência, diferenciação, qualidade, impacto e lastro.

A atitude criativa está intimamente ligada a uma escuta activa e filtrada da realidade, a um open mode que se instaura como um necessário exercício de resistência, no sentido de acolher paciente e demoradamente a complexidade e de não se render à geometria do mundo. Esse movimento de vital contrapeso – que pára, contempla, espanta-se, aprofunda, questiona, desconstrói o formatado, o expectável, o estabelecido, o linear, muitas vezes buscando lugares de desconforto – afigura-se cada vez mais premente para criar contraditório e pensamento divergente.

O poeta Herberto Helder escreveu, com veemência e lucidez: “É preciso cantar como se alguém soubesse como cantar”. Esse ousar necessário, esse ímpeto pleno de inquietação e efeito imprevisto, essa atitude primacial de “queimar os lugares reticentes deste mundo” (ainda versos herbertianos) para construir espaços de silêncio e paixão, são os motores do processo criativo e, assim, de uma vida expansiva e refluída.

Esse mergulho no abismo é, aliás, um dos gestos mais revolucionários que podemos conceber hoje em dia, convocando curiosidade, atenção (uma implica a outra: não há atenção sem curiosidade e esta pressupõe sempre a atenção), imaginação e risco. Vivemos num regime de profusão e abundância, hiper-saturado, em que predomina a “crise da atenção”, a “sociedade do espectáculo” (Guy Debord) e em que tudo parece ser, acriticamente, importante. Mas é essencial o interlúdio, a cesura, a pausa, o intervalo que dá tempo e espaço livres à curiosidade.

A criatividade pode ser esse lugar onde ninguém jamais esteve, em que a criação é um modo de matar a morte. Precisamos de pontos de exclamação na existência, os quais, como nos relembra Gonçalo M. Tavares, nascem amiúde de momentos em que se vê o já antes visto num outro sítio, num sítio errado, numa dialéctica para a qual são convocados o susto, o espanto e uma certa capacidade para desenvolver um erro até ao seu limite.

Nikos Kazantzakis, escritor grego, costumava dizer que, ao acreditar apaixonadamente em algo que ainda não existe, nós criamo-lo, pois, segundo ele, o não-existente é qualquer coisa que nós ainda não desejamos o suficiente. Vivemos um tempo de reconstrução e de oportunidades, em que fermenta uma explosão criativa (que sempre foi e é) fundamental enquanto máquina de guerra contra a banalidade, a homogeneização e o nivelamento, isto em prol de narrativas próprias, vozes singulares, dinâmicas disruptivas.

O exercício da criatividade, cativante cruzamento entre curiosidade e imaginação, não se compadece, por isso, com um modus operandi predefinido ou com uma lógica necessariamente unilinear, previsível, sequencial ou consequente. O seu ponto de partida é, muitas vezes, um corajoso e assumido elogio do “não sei” e um enfoque na pergunta e no processo, mais do que na resposta e na paragem final.

Porventura, sabemos melhor o que a criatividade não é. Não é um talento nem está necessariamente relacionada com o quociente de inteligência. É um modo de operar em que o indivíduo revela uma propensão para “brincar”/explorar, à imagem das crianças. Aliás, ninguém como elas nos ensina tanto sobre o que é ser criativo. O poeta Ruy Belo disse, certo dia, num texto tão certeiro quanto grandioso, que ninguém sabe andar na rua como as crianças, que elas se abrem à aragem e vão com o vento, que elas não vão a nenhum sítio determinado, mas apesar disso vão sempre muito mais longe (como os pássaros). As crianças não têm pruridos nem receio de arriscar, até porque quando estão a brincar nada está errado.

Brincar como elogio da fragilidade, como via para chegar a um lugar novo, que nem ilha perdida, que não sabíamos que podia existir e no qual também não podemos prever o que está à nossa espera. Como se a criatividade fosse uma realidade onde devemos entrar em silêncio, de olhos bem abertos, como fazem as crianças quando se aventuram a entrar numa casa abandonada. E para isso é preciso aditar nuvens ao céu, olhar para cima como dizia Agostinho da Silva, ter a cabeça nas nuvens como as crianças e os pássaros.

Numa entrevista recente, quando lhe perguntaram o que hoje o deixava mais desconcertado quando olhava para fora, Luis Miguel Cintra responderia: “O pensamento utilitário e sem nuances, compartimentado em gavetas. As coisas são todas ou brancas ou pretas, não há cinzentos, não há dúvidas, hesitação, contradições. (...) O que me horroriza mais é que em vez de ser valorizada a indecisão – e tudo aquilo de onde surge novidade – se avance no sentido da petrificação da realidade.”

Por outro lado, torna-se urgente (continuar a) desconstruir em certo imaginário colectivo uma conotação negativa ou um cepticismo ainda associados, aqui e ali, ao perfil e atitude criativos no campo das artes – algo menos comum quando, ao invés, se percepciona a criatividade científica, tecnológica ou pedagógica. O processo de criação é sempre feito de avanços e recuos, numa dinâmica iterativa, assentando na tentativa de aclarar o desconhecido e na reiterada testagem de possibilidades e recombinações, visando expansão, complexificação, descoberta contínua. Um percurso não poucas vezes marcado por falta de clareza, dispersão, limbos, vazios, dúvidas, indefinições e por “processos caóticos” como mecanismos essenciais à activação do pensamento criativo.

Como tal, é preciso valorizar mais o trabalho de bastidores que subjaz ao acto criativo, mesmo aquele que não desemboque necessariamente ou desde logo numa apresentação pública ou noutra forma de externalização. E isso também passa por associar, de forma generalizada, um suporte financeiro ao labor de cariz profissional realizado em contextos de residência artística e noutros espaços de apoio à criação. O trabalho artístico deve ser remunerado em todas as suas etapas, não devendo ainda ser um refém absoluto das questões do ritmo temporal de produção nem de escalas quantitativo-estatísticas de produtividade.

Segundo um biógrafo seu, no leito de morte Gertrude Stein, escritora e poeta norte-americana, terá erguido a cabeça e perguntado: “Qual é a resposta?”. Como ninguém reagiu, ela sorriu e disse: “Nesse caso, qual é a pergunta?” Não restam muitas dúvidas de que a curiosidade e a imaginação são instrumentos de sobrevivência: imaginamos para existir e os actos interrogativo e criativo elevam-nos. Para isso, é preciso abrir os olhos frente ao precipício e cair verticalmente no risco.

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