Um penteado novo a 220 km/h

Sobre o artigo “Penteados e massagens sobre carris não entusiasmam passageiros”, de Catarina Gomes, publicado no primeiro caderno de 2 de Abril de 2006.

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O Alfa Pendular da CP teve um serviço de cabeleireiro Daniel Rocha
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Houve um tempo em que o comboio em Portugal tinha melhor fama. Não só aparecia sempre, como surgia limpo e a horas. Feitas as coisas simples, havia quem pusesse a sua criatividade ao serviço da inovação e chegasse à conclusão de que o que fazia falta num Alfa Pendular era um cabeleireiro ou um massagista.

O programa parecia extraordinário: sair de Lisboa às 6h da manhã com um penteado velho e chegar ao Porto com um novo estilo. Só que o cabeleireiro que em 2006 queria andar a pentear os passageiros da CP pouco cliente viu pela frente. A hora matinal da viagem puxava mais ao sono do que ao pente e, à falta de cabelos para pentear, restava ao homem que tratava dos cabelos a televisão do Alfa, que repetia o mesmo programa dia após dia, para desespero do passageiro frequente.

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“Penteados e massagens sobre carris não entusiasmam passageiros” de Catarina Gomes publicado no primeiro caderno de 2 de Abril de 2006. Arquivo PÚBLICO

Na volta, as coisas corriam um pouco melhor. O regresso no Alfa que partia do Porto às 21h15 – e que, vítima do tempo, desapareceu, obrigando a um regresso hoje mais antecipado à capital – oferecia um serviço de massagens. Mas o cliente do Alfa Pendular estava mais preocupado com o trabalho que tinha ao computador. A chinesa Tang Yagun, encarregada das massagens de relaxamento na viagem que marcava para muitos o final de um dia de trabalho, lá tinha um ou outro cliente, mas pouco importava, porque os tempos mortos eram preenchidos com uma novela chinesa que trazia para ler.

A experiência das massagens, maquilhagem e cabeleireiro — feita em parceria com a empresa A Vida é Bela não durou muito tempo. Nem era para durar. Tudo não passou de uma operação de marketing cujo objectivo final era promover o aumento da frequência do Alfa Pendular na Linha do Norte. Em vez de apostar na publicidade tradicional, com anúncios a informar que havia mais comboios, a administração optou por uma campanha disruptiva, com base nestes serviços originais, informando também do aumento da oferta.

O marketing e a comunicação foram, aliás, a prioridade daquela administração da CP, ao tempo liderada por António Ramalho e Miguel Setas. O presidente chegou a ser criticado por gastar meio milhão de euros em marketing, mas este respondia que até pedia desculpa por não poder gastar ainda mais. Só com bom marketing se ganhava mercado, acreditava.

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Na verdade, a experiência não era original. Em 1979, o comboio Mistral (que ligava Paris à Côte d’Azur) também tinha cabeleireiro a bordo e o Eurostar (que liga Paris a Londres pelo túnel da Mancha) também chegou a oferecer serviço de massagens a bordo. Os caminhos-de-ferro suíços e italianos tiveram um período em que ofereciam cursos de inglês aos clientes e várias companhias ferroviárias inovaram com a introdução de espaços infantis nas carruagens.

Apesar de caracterizada por muito show off, a administração de António Ramalho tinha razão ao dizer que a sua iniciativa no Alfa Pendular “comprova uma vez mais que (quase) tudo pode ser feito a bordo de um comboio nas suas múltiplas possibilidades de ocupação do tempo".

Dezassete anos depois, o marketing conta hoje pouco na CP, que está mais centrada na engenharia para garantir que haja comboios a circular. Administrações houve em que nem prioridades havia, a não ser gerir a decadência do, aparentemente, prioritário desinvestimento no caminho-de-ferro.

O certo é que as massagens e o cabeleireiro sobre carris acabaram pouco depois de terem começado, os comboios internacionais, jornais e o café da 1.ª classe desapareceram com a pandemia e, entre greves e avarias, desapareceram este ano quase 31 mil comboios. A ferrovia já só precisa de que as promessas de investimento não desapareçam à velocidade com que acabaram as massagens.

Todas as segundas-feiras, mergulhamos no arquivo do PÚBLICO para recordar histórias de outros tempos.

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