A propósito das JMJ: a laicidade do Estado e a história da cultura portuguesa

Os órgãos do Estado estão obrigados a respeitar o princípio da laicidade do Estado, mas também a cultura portuguesa e seus alicerces, nos quais os cidadãos, de forma livre, se revêem.

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A propósito da Jornada Mundial da Juventude, discute-se no espaço público acerca da relação do Estado português com a Igreja Católica, tendo em conta o princípio constitucional da liberdade religiosa, entre outros princípios constitucionais que nos obrigam a um respeito igual pelas diferentes confissões. Esta liberdade religiosa dos cidadãos obriga a que o Estado mantenha relações de separação de poderes com todas elas. Nesta perspectiva, o Estado é laico. O Estado português não privilegia relações especiais com nenhuma religião.

Enquanto membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciência da Vida, tive o privilégio de co-organizar e participar no debate realizado na Universidade da Beira Interior sobre a eutanásia, na altura em que este órgão consultivo do Estado preparava o seu parecer. Neste debate participaram todas as confissões religiosas, numa séria, cordial e profunda discussão sobre o valor da vida, na concepção de cada uma.

Parece-me que Estado laico significa isto mesmo: contar com todas as confissões religiosas na discussão sobre assuntos fundamentais da sociedade, sem se vincular a nenhuma em particular. E, naturalmente, ouvir todos os cidadãos que não perfilham confissão religiosa, como também foi feito. Estado laico, mas democrático.

Mas há duas dimensões de análise que temos de acrescentar: i) por um lado, a relação do Estado português com outro Estado; ii) por outro lado, a matriz cultural do país.

Quanto à primeira, encontrando-se a Confissão Católica organizada num Estado – o Estado da Santa Sé – Portugal, enquanto Estado soberano e democrático, mantém relações regulares com este Estado. Como o faz com outros. A Concordata, que prevê um conjunto de aspectos da vida das pessoas, como o casamento, é exactamente um acordo entre dois Estados. Isso prejudica-nos? Não me parece!

Os que defendem a revogação da “Concordata” devem apontar as razões sociais, culturais e jurídicas que justificam a anulação deste acordo entre Estados. A não ser feita, parece que estamos a criticar a “ditadura” da religião com uma “ditadura” do laicismo, em que o Estado da Santa Sé, por ser um Estado de uma confissão religiosa, deixa de poder estabelecer protocolos com o Estado português. Não será excessivo?

Mas a outra perspectiva de análise exige um pouco mais de aprofundamento da reflexão. Há uma diferença entre Estado laico e Estado ateu. Mas convém começar por clarificar o conceito de Estado. Estado é um conjunto de cidadãos, como uma cultura própria, que se organiza em órgãos de poder, e se articula de forma soberana com os demais Estados. Num Estado de Direito Democrático, como é o nosso, o Estado – conjunto de cidadãos – elege os seus representantes nos diferentes órgãos de soberania. Ora, os órgãos do Estado estão obrigados a legislar e a governar no respeito pelo princípio da laicidade do Estado, mas estão igualmente obrigados a respeitar a cultura portuguesa e seus alicerces, nos quais os cidadãos, de forma livre, se revêem. De tal forma, que os órgãos do Estado estão obrigados a “proteger e valorizar o património cultural do povo português”, como determina a alínea e) do artigo 9.º da nossa Constituição. O Estado é governado por órgãos laicos, mas constituído por cidadãos culturais.

Ora, um Estado com quase 9 séculos de história está impregnado de várias influências culturais que fizeram de nós o que somos hoje. Colocamos em dúvida que, a par da influência greco-romana, a influência judaico-cristã se constitui como os nossos alicerces culturais? Não dizemos que “todos os caminhos vão dar” a Londres, pois não? E continuamos a dizer: “quando a esmola é muita o santo desconfia”. Queremos maior demonstração da nossa impregnação cultural?

Cada um de nós, no exercício da sua liberdade, escolhe a religião que entender e os valores de vida que lhe faz sentido. Mas o ser humano não vive culturalmente isolado. Naturalmente, deixa-se influenciar pelos valores da cultura aonde se insere. Cultura e liberdade coabitam em nós.

Assim, não tanto porque a maioria dos portugueses são católicos, mas sobretudo porque a cultura portuguesa se encontra, naturalmente, impregnada dos valores desta religião, quer no dia-a-dia das nossas vidas, quer nas leis que nos regulam, parece-me que nos fica bem acolher os peregrinos católicos e o Santo Padre. Como nos fica bem acolher os eventos das demais religiões, como sempre aconteceu.

Sobre se o Estado gasta de modo exagerado neste evento é outra discussão. É uma discussão sobre gastos exagerados em eventos públicos. Estádios de futebol abandonados são prova disso. Na Jornada Mundials da Juventude e em qualquer evento não estadual, os gastos públicos devem ser reduzidos ao mínimo. A não ser que sejam investimento, como aconteceu na Expo-98; ou tragam retorno financeiro para o país.

Mas não contaminemos a reflexão sobre a riqueza da história cultural portuguesa e a sua preservação usando como argumentos decisões actuais sobre eventos.

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