Mais de 200 pessoas contribuíram para cartazes que lembram abusos sexuais na Igreja
Os cartazes foram instalados em Loures, Algés e na Alameda, em Lisboa, depois de uma recolha de fundos que superou as expectativas.
Lisboa acordou com três cartazes que lembram as conclusões do relatório sobre os abusos sexuais de crianças na Igreja Católica, uma crítica ao "silêncio ensurdecedor" quanto a este assunto durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ).
A ideia surgiu na quarta-feira passada, 26 de Julho, enquanto se ultimavam os preparativos para o encontro de jovens católicos. “Desde que saiu o relatório da comissão independente (ICAR) que me sinto revoltada com esta questão. Apesar de a jornada estar a acontecer e haver uma espécie de lavagem de imagem da igreja católica, nós não esquecemos as vítimas”, começa por explicar Telma Tavares, designer e autora dos cartazes.
As imagens, mais tarde convertidas em outdoors gigantes, foram a forma que encontrou para não deixar o tema cair em esquecimento e homenagear as vítimas. Partilhou-as no Twitter e encontrou o apoio de várias pessoas que se juntaram ao projecto This Is Our Memorial ("este é o nosso memorial", em português). No início, pensou que as ilustrações ficariam apenas nas redes sociais ou, quem sabe, estampadas em t-shirts até Bruno Rodrigues, outro membro da iniciativa cidadã que começou no Twitter, ter sugerido fazer um crowdfunding para “criar um cartaz e afixá-lo na 2ª circular”, recorda Telma Tavares.
Os outdoors foram instalados depois de duas campanhas de angariação de fundos organizadas por um grupo de cidadãos. Ainda que a ideia fosse juntar verbas para afixar um outdoor, a primeira campanha, iniciada a 27 de Julho, superou a meta dos 950 euros. Em menos de um dia, 216 pessoas ajudaram a angariar 2226 euros. Assim, foi lançado um segundo crowfunding, a 29 de Julho, para acumular mais 700 euros e preparar a afixação de um terceiro cartaz. Uma vez mais, o objectivo foi superado, com 77 pessoas a doarem, no total, 760 euros.
Os cartazes com as cores da JMJ – vermelho, verde e amarelo - foram afixados em Loures, Algés e na Alameda com o número de crianças que membros da igreja abusaram sexualmente, segundo a comissão independente (ICAR) que investigou os casos. Cada ponto vermelho representa uma pessoa. A mensagem está em inglês para que todos os peregrinos a consigam perceber: "Mais de 4800 crianças" foram abusadas por elementos da igreja, lê-se.
Esta manhã foram vistos elementos da Polícia Municipal de Lisboa junto aos cartazes instalados pela iniciativa cidadã This Is Our Memorial. Sobre esta questão, a PSP admitiu que, para este dia, tem outras prioridades e remeteu mais esclarecimentos para a câmara. Ao P3, fonte da PSP acrescentou ainda que "a opinião pública é livre" e, uma vez que os cartazes "não instigam à violência", será apenas verificado o cumprimento dos "formalismos de pagamento e comunicação" à Câmara Municipal de Lisboa, processos inscritos na legislação municipal.
No entanto, ao início da tarde, o cartaz de Algés foi removido. “De momento, nem a PSP nem o sistema de segurança interno têm informação para comentar esse assunto”, disse Artur Querido, porta-voz do Sistema de Segurança Interna, questionado pela Reuters numa conferência de imprensa.
Telma Tavares reforça que os cartazes são mensagens políticas e, como tal, não precisam de licença. Mesmo assim, e como o grupo receava que fossem removidos, contactaram a autarquia de Lisboa dia 31 de Julho a fim de pedir autorização, mas a resposta continua pendente. A par disto, preencheram questionários de licenças online mas, na opinião da designer, “não estavam preparados para pedidos particulares”.
O projecto This Is Our Memorial, um grupo de cidadãos que se diz "com diversos credos", critica as indecisões sobre o memorial em homenagem às vítimas de abuso sexual. "As declarações públicas de elementos envolvidos na organização da JMJ, e até do Presidente da República, vão desde a minimização das vítimas até ao assumir do 'desconforto' com a ideia de um memorial", lê-se no site.
“É uma forma de trazer tudo ao de cima e lembrar isso neste período em que há muita visibilidade na igreja católica portuguesa devido a este evento internacional. Queremos que os peregrinos vejam o que se passa em Portugal há vários anos e que nada mudou”, acrescenta Telma Tavares.
Fornecedor recusou fazer cartaz “anti-religioso"
Apesar da rápida adesão à recolha de fundos, o grupo teve dificuldade em encontrar empresas dispostas a fazer os cartazes. Os fornecedores teriam de estar sediados nos três locais onde decorre a JMJ, uma vez que iriam colocar os cartazes na madrugada desta quarta-feira. Conseguiram que duas empresas aceitassem o trabalho, mas, no final, apenas uma “cumpriu a palavra até ao fim”.
“Houve outro fornecedor que, na sexta-feira, aceitou a adjudicação do trabalho, colocou em produção, mas na segunda-feira ao final do dia recusou-se a fazer os cartazes porque a mensagem estava em inglês e disse que isso era ilegal, o que é mentira. É possível ter cartazes em inglês desde que o público-alvo seja estrangeiro, o que é o caso”, explica Telma Tavares, acrescentando que consultou advogados a propósito do comentário do dono da empresa cujo nome prefere não revelar.
No entanto, este não foi o único motivo de recusa. Segundo a mesma, o fornecedor disse ainda que o cartaz era “anti-religioso” e que ia contra os estatutos da empresa. A par disto, afirmou que não tinha disponibilidade para executar o trabalho, uma vez que a equipa estava de férias.
“Acabou por boicotar o cartaz de Loures, mas acabamos por arranjar outro e ter um cartaz perto do tribunal”, adianta. O local, revela, foi estrategicamente escolhido para assinalar "crimes que ficaram por julgar".
Apesar do esforço para alertar para a situação, os promotores da iniciativa lembram que "nada poderá reparar a experiência e a vida" das vítimas. Por isso, reforçam, assumem a missão de "denunciar o silêncio ensurdecedor". No site do This Is Our Memorial também são disponibilizados os contactos de várias associações de apoio a vítimas de abuso sexual.
“Acho que há aqui muita gente que, tal como nós, está revoltada por não ter acontecido justiça. Parece que os membros da igreja são intocáveis. Queremos lembrar que estas vítimas existem, que não tiveram indemnizações, não tiveram um memorial, o que é extremamente injusto e estamos a fazer isto por elas”, conclui Telma Tavares.
Durante a semana em Lisboa, o Papa Francisco irá reunir-se com vítimas de abusos sexuais na Igreja Católica. O pontífice aterrou em Portugal na manhã desta quarta-feira.