“Jéssica perdeu o direito à infância de uma forma medieval”: mãe e três arguidos condenados a pena máxima
Colectivo de juízes considerou a mãe da criança e outros três arguidos culpados do crime de homicídio qualificado e condenou-os a 25 anos de prisão.
Os principais arguidos no caso do homicídio de Jéssica Biscaia, a menina de três anos que morreu no ano passado, em Setúbal, vítima de violência, foram condenados esta manhã a penas máximas, de 25 anos de prisão, com o juiz presidente do colectivo a afirmar que a criança “perdeu o direito à infância de uma forma medieval”.
“O tribunal ficou convencido que os responsáveis pelo homicídio [qualificado] terão sido eles [os três arguidos, da família Montes]”, disse Pedro Godinho na leitura do acórdão, no tribunal de Setúbal.
Dirigindo-se a Ana Pinto, conhecida por Tita, Esmeralda Montes e Justo Montes, o juiz disse que não foi possível apurar a culpa de cada um, mas acrescentou “não ser necessário”.
“Quem acolhe uma criança em casa, com três anos, assume o dever de garantir a sua sobrevivência e bem-estar. Qualquer ser humano imputável numa sociedade civilizada tem o dever de saber isto”, sublinhou o juiz.
“Ainda que não consigamos dilucidar o que cada um fez, mas as mais de 150 agressões [que Jéssica sofreu] são suficientes. Algumas das agressões podem não ter sido feitas por vocês, o que não pode ser é vocês não saberem e não terem podido impedir”, sintetizou Pedro Godinho. “Em comunidade alguma do mundo estes factos seriam tolerados”, acrescentou.
O tribunal aceitou a qualificação, concluindo pelo crime de homicídio qualificado, “por tratar-se de uma criança indefesa” e por ter existido tortura.
A mãe da criança foi condenada também por homicídio qualificado por omissão de auxílio por “violação grosseira do dever de proteger a sua filha”. “Gostava da filha para usar, para ter, tinha receio apenas de que lha tirassem”, referiu.
“A culpa do resultado morte supera a dos outros arguidos”, atirou o juiz, que justificou assim a não atenuação da pena.
O quinto arguido deste caso, Eduardo Montes, que estava acusado dos crimes de tráfico de droga e de violação foi absolvido por falta de provas. Os restantes arguidos acusados destes mesmos crimes foram igualmente absolvidos quanto ao tráfico e droga e violação.
Foram todos absolvidos também dos crimes de coacção e de rapto.
Quanto aos crimes de ofensas à integridade física no primeiro período em que a menina esteve na casa da família, o tribunal deu também como não provados.
Já dos crimes de ofensa à integridade física qualificada nos cinco dias anteriores à morte de Jéssica, o colectivo deu como provado que a criança “começa a levar pancada no dia 20 e leva pancada até morrer” mas não condenou ninguém por este crime.
O tribunal considerou que o crime de homicídio qualificado consumiu os crimes de ofensa à integridade física qualificada, pelo que os arguidos foram absolvidos também por este último.
150 lesões em cinco dias
“Seguramente com envolvimento e conivência de todos” os arguidos que viviam na mesma casa, a criança sofreu agressões “da cabeça à ponta dos pés”, num “total mínimo de 78 fortes pancadas”. Sofreu ainda 76 cortes, beliscões e outras ofensas cortantes que provocaram escoriações. Foi dado como provado que foi queimada com líquido fervente, sofreu fortes embates com a cabeça contra superfície dura e múltiplos arrancões de cabelo, pela raiz, que a deixaram com peladas.
O tribunal separou três equimoses, “que são as lesões que provocaram a morte, de acordo com o perito”. São embates contra superfícies duras. “Nas descartamos a possibilidade de a criança ter sido agarrada pelos pés e arremessada contra a parede, como se de um bastão se tratasse. Não temos a certeza, mas o resultado é compatível”, aventou o colectivo.
“As equimoses falam de acordo com a cor e dizem que as mais antigas têm cerca de cinco dias, e isso dá-nos a baliza de quando começaram as pancadas, cinco dias antes da morte. E depois temos um sem-fim de cores, e, com base no tempo dessas lesões, conseguimos agarrar alguns marcos fortes sobre onde foram feitas. Temos os vestígios na casa da família Montes e que foram recolhidos após uma tentativa apressada de lavagem, com lixívia, para apagar esses vestígios. Ainda assim os vestígios são abundantes e fortes, temos sangue de Jéssica Biscaia e cabelos, arrancados pela raiz, na casa do Beco do Pinheiro, quando já estava moribunda. O que lá está chega. Temos várias câmaras pelo que o tribunal consegue fazer o exercício de deslocação das pessoas envolvidas”, explicou o juiz.
O colectivo apontou a “pouca colaboração”, dizendo que “alguns arguidos falaram para colaborar com mentiras”.
Pedro Godinho classificou as declarações verdadeiras dos arguidos como sendo apenas “uns bagos de milho aos pombos num jardim de mentiras”, pelo que o tribunal “não pode fazer fé” nos depoimentos.
O colectivo convenceu-se de que Inês Sanches viu a filha na véspera da sua morte, quando teve a convulsão e já estava em risco de vida. Esse facto não ficou provado mas o colectivo entende “poder dar esse passo”, no âmbito das presunções que lhe são admitidas.
O tribunal formou a convicção de que todos os arguidos estavam na casa e que todos tiveram conhecimento e autorizaram a presença da criança.
Além das múltiplas lesões, que enchem 10 páginas do acórdão, o tribunal deu também como provadas lesões no ânus da menina, mas em período anterior aos cinco dias fatídicos, e que a criança foi sujeita a contacto com várias drogas.
Entre os factos não provados, que o juiz classificou como “todo um enredo”, estão a alegada bruxaria, o alegado tráfico de droga, as circunstâncias em que Jéssica Biscaia foi sujeita a contacto com drogas e o motivo da dívida de Inês Sanches à família Montes. Ficou provado que a criança foi exposta “a cocaína no período em que esteve” na casa da família Montes, mas não se provou o contexto.
O tribunal decidiu atribuir a indemnização ao pai da criança, a pagar pelos condenados, mas por um valor “simbólico” de 50 mil euros, com o colectivo a considerar que Alexandrino Biscaia não cumpriu os seus deveres e que foi apenas "um pai simbólico".
No final do julgamento, o juiz-presidente da Comarca de Setúbal, António Fialho, fez questão de destacar a celeridade com que o tribunal de Setúbal julgou o caso e de elogiar o juiz-presidente do colectivo, Pedro Godinho, pela forma "exemplar" como conduziu o processo.