A mulher-bala
Viro a cara e tapo os olhos com as duas mãos. Custa-me ver a minha filha ser cuspida pelo canhão em chamas. Oiço o coro exclamativo da audiência, o som não deixa de me impressionar.
Aura entra sempre com a perna direita dentro do canhão. O cano ornamentado com trovões laranja fluorescente tem treze metros de comprimento. Contudo, e graças à técnica da artista e da máquina, nunca se deu o infortúnio. O mecanismo demorou mais de dois anos a construir. Foram investidas bastantes horas para que a vida humana não fosse posta em perigo.
Na lateral do enorme tubo, ocupando uns bons cinco metros, pode ler-se "Aura" – o seu nome de circo. O que fora registado em criança não soava bem quando anunciado ao microfone na tenda. Por isso, rebaptizámo-la. De Aurélia passou a Aura: a mulher-bala.
Há muito que deixei de ser domadora de elefantes, devido a um acidente com um dos enormes mamíferos que me lesionou severamente a espinha. Desde então, tinha a Aurélia ainda o rabo acolchoado por fraldas e já sonhava em ser bala, círculo pela arena sentada. Fiquei agarrada a uma cadeira, mas nem por isso perdi o gáudio de viver.
Costumo dizer que, desde o acidente, a vida me corre sobre rodas; literalmente. Há vantagens; por exemplo, nunca me canso e a minha voz ao microfone da grande tenda soa a fresco, dizem-me que parece despreocupada. A minha única preocupação é a Aura.
Nos últimos tempos tem ganho peso – as suas ancas estão cada vez mais largas e arredondadas. O diâmetro crescente da minha filha inquieta-me. Não se entende que a forma corpórea de uma rapariga de vinte e dois anos de idade, cuja actividade desportiva é diária e intensa, esteja de dia para dia mais avantajada.
Desengane-se quem estiver a pensar em gravidez – foi a primeira coisa que me ocorreu –, calculo que a vós também. Todavia, há três temporadas que não pára de crescer em largura, por isso, a não ser que fosse uma gestação alienígena, já teríamos tido alguma revelação vinda da sua barriga. Preocupa-me que a minha filha, além de esférica, esteja com um aspecto doente – a pele macilenta, o cabelo quebradiço e os olhos azulados na zona que se quer branca.
– Tens de ir ao médico. Há alguma coisa no teu corpo que não está bem.
– Sinto-me formidável, mãe. Não há motivo para alarme. Os medos desapareceram, domestiquei-os. Não tenho medo de nada. Sinto-me forte como o aço. – diz a minha filha enquanto coloca o capacete e os óculos de protecção antes de entrar na arena.
Não entendo, tenho medo. As mães nasceram para o medo porque os filhos não são de ferro. Temo pela sua saúde e também pelas questões económicas da técnica. Aura tem alargado tanto nas ancas que, não tarda, deixará de caber na calha e teremos de construir outra máquina. Como calculam, estas coisas levam tempo e dinheiro e o circo há muito que não vive de receitas auspiciosas.
– E agora, peço a vossa máxima atenção. – rogo, através do microfone – Cinco, quatro, três, dois, um. Fogo!
Viro a cara e tapo os olhos com as duas mãos. Custa-me ver a minha filha ser cuspida pelo canhão em chamas. Oiço o coro exclamativo da audiência, o som não deixa de me impressionar, por mais vezes que o tenha ouvido. É que eu, apesar de ser uma pessoa do circo, tenho um coração igualzinho ao das outras mães. Por isso, prefiro não ver.
Depois do salto, destapo os olhos e assisto ao resto do número. A minha filha volta a trepar para cima do canhão e agradece os aplausos esfuziantes da plateia. O som das palmas assemelha-se ao estalar de batatas ao lume numa enorme frigideira. O maillot completo prateado e coleante revela as formas cada vez mais generosas de Aura. Fá-la parecer ainda mais avantajada.
Não há antecedentes de gordos na família, que saibamos; somos todos magros e do circo. Eu, Aura, o meu marido e o nosso filho mais novo – o Leonardo é ilusionista, mas no intervalo do nosso show também vende pipocas ou tira fotografias aos espectadores. Todos fazemos várias coisas, o que nos calhar para o dia. O meu marido, por exemplo, é o palhaço principal e o Director da Companhia, e também ocupa muitas vezes o lugar na bilheteira a vender as entradas.
Aura entra sempre com a perna direita no canhão – fiz-lhe prometer que o faria sempre assim. A sequência da mulher-bala dura três minutos e 21 segundos, o disparo demora apenas dois segundos. Há que criar tensão através da coreografia antes do salto. O circo vive da teatralidade exagerada. Nós vivemos para isso. Mas hoje, depois do som do disparo do canhão não há sinal da minha filha.
O público não reage. Para quem não conhece o mecanismo do canhão, a situação não parece tão dramática, mas nós, os de circo, sabemos que a Aura não pode simplesmente sair pelo seu próprio pé depois do estoiro e repetir a coreografia. Porque uma vez disparado o mecanismo, se o êmbolo de ferro a apanha a meio, o mais certo é a morte. O maior risco deste número reside precisamente na entrada e no disparo. E hoje há um problema qualquer com a máquina, o gatilho soltou-se. Eu e o meu marido, que está nos bastidores vestido de palhaço, preparado para o número seguinte, quase morremos de expectativa. Não sou capaz de dizer nada ao microfone, estou paralisada. O meu filho Leonardo arranca-me o micro das mãos e fala à plateia para não deixar cair a cena.
– Vivemos um dos momentos mais dramáticos do show, senhoras e senhores, meninos e meninas, sustenham a respiração. Aguardemos pela mulher-bala. – anuncia o meu filho, sem vestígio de pavor. Passaram apenas uns dois minutos, embora me pareça uma eternidade à apneia. O meu marido vestido de palhaço entra na arena e volta a engatilhar o canhão já em chamas.
Ouve-se um novo disparo e vejo, por fim, Aura a sair disparada – sã e salva e redonda. É a primeira vez que assisto ao número completo da mulher-bala. Aterra alguns metros à frente do canhão; a cútis que está visível, a pele do rosto e das mãos – já que o resto se encontra coberto pelo fato e pelas botas de cano alto prateados –, encontra-se completamente cinzenta. Não parece queimada ou suja, mas a sua pele está antracite e mate como uma bola de canhão. Vejo-a enrolar-se sobre si própria, tal qual um bicho-de-conta, e rebola até à minha cadeira de rodas. Pára junto aos meus pés inertes. A minha filha transformou-se numa enorme bola. – Aura – chamo-a num sussurro. Não responde. Insisto – Aura! –, e nada. Percebo, enfim, que a minha menina não era um caso de obesidade gradual. Aura nunca quis ser uma rapariga, ambicionava ser uma coisa.
– Hélas! – escapou-se-me a exclamação de ascendência francesa. Não sei que misteriosos desígnios metamorfosearam Aura numa bala, ou melhor, numa bola. Sei que o meu coração de mãe se apaziguou. A minha menina não correria mais perigos, finalmente adequada ao seu próprio desejo e à educação de família – a munição ideal.