Uma prova de 19 colheitas do Quinta da Mimosa e uma história com o Presidente Marcelo

Uma vertical de Quinta Mimosa (Casa Ermelinda Freitas) revelou que é um desperdício beber Castelões novos das areias da Península de Setúbal. Devíamos mudar de hábitos.

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O Terroir fez uma prova vertical de Quinta Mimosa (Casa Ermelinda Freitas), com vinhos entre 1998 e 2021 Matilde Fieschi
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Ninguém estranhará hoje o rótulo do tinto Quinta da Mimosa, mas, há 24 anos, quando lançou o primeiro vinho desta referência premium da casta Castelão — colheita de 1998 — o slogan menos antipático que Leonor Freitas ouviu foi que a Casa Ermelinda Freitas tinha criado “o vinho da Pipi das Meias Altas”. Em 1999, lançar um vinho com um rótulo redondo, roxo e com uma cápsula em dois tons de roxo (as supostas meias da Pipi) foi algo que deixou gente do comércio com os cabelos em pé.

“As pessoas ligavam-me a dizer: 'Ó Leonor, por amor de Deus, mas o que é isto? Onde é que já se viu um rótulo assim? Não vai funcionar, façam lá alguma coisa'. Fiquei com dúvidas e comecei a pensar em soluções alternativas para as colheitas seguintes, mas, quando comuniquei que ia fazer alterações, os que tinham criticado começaram a dizer que não, nem pensar, que, afinal, os clientes andavam a repetir as compras, que o vinho era muito bom e que o rótulo até tinha a sua graça”, refere ao Terroir Leonor Freitas, a criadora do projecto Ermelinda Freitas, em homenagem à sua mãe.

De maneira que, tirando um ligeiro esbatimento cromático das cores da cápsula das meias da Pipi, não se fizeram grandes alterações à imagem da garrafa. Hoje, a marca que se faz todos os anos desde 1998 – caso raro numa referência premium – vende 40 mil garrafas por colheita, a preços entre os 10 e os 13 euros.

Leonor Freitas criou a Casa Ermelinda Freitas a partir de um negócio de venda de vinho a granel herdado dos pais, avós e bisavós Matilde Fieschi
Jaime Quendera é o enólogo da Casa Ermelinda Freitas Matilde Fieschi
A Ermelinda Freitas criou a marca Quinta da Mimosa em 1998, e faz este vinho desde então, um caso raro numa referência premium Matilde Fieschi
Provámos 19 Castelões da Quinta da Mimosa, entre 1998 e 2021 Matilde Fieschi
Na vertical que o Terroir fez de Quinta da Mimosa só não encontraram nos stocks do produtor garrafas de 2009 Matilde Fieschi
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Leonor Freitas criou a Casa Ermelinda Freitas a partir de um negócio de venda de vinho a granel herdado dos pais, avós e bisavós Matilde Fieschi

O Castelão é uma das grandes castas tintas portuguesas. Crescendo nos terrenos de areia da região de Península de Setúbal, dá origem a alguns dos melhores tintos portugueses, desde que os consumidores tenham o bom gosto de deixar o vinho ganhar algum mistério em garrafa (dois ou três anos depois da data de colheita será o ideal).

Aqui no PÚBLICO já temos o teclado gasto de escrever a história, mas cá vai na mesma: nós, portugueses, em matéria de consumo de vinhos, somos de luas (duas): primeira lua, abrimos garrafas acabadas de lançar como se o mundo acabasse no dia seguinte; segunda lua, guardamos durante tanto tempo alguns vinhos em casa (sempre à espera daquele evento especial) que quando finalmente abrimos a garrafa o que está lá dentro é vinagre e não vinho. Nem sabemos qual das luas é a pior.

O desafio lançando pelo Terroir a Leonor Freitas e a Jaime Quendera (o enólogo da casa) teve como finalidade perceber como evoluía o primeiro tinto de Castelão da Península de Setúbal estagiado em barricas novas de carvalho, ideia esta que, no final dos anos de 1990, levou António Francisco Avillez (o genial criador de marcas que ainda hoje são referências nacionais) a desabafar com Leonor Freitas nos seguintes termos: “Como é que eu não me lembrei de semelhante coisa?”. Há 24 anos, barricas novas só se usavam para castas com pedigree, sendo que o Castelão não fazia parte da lista.

Convém percebermos que quem gere uma casa que produz 25 milhões de litros de vinho por ano não costuma ter tempo para provas verticais (o negócio tem as suas exigências), pelo que Leonor e Jaime tinham algum receio do comportamento das 19 colheitas do Quinta da Mimosa (só não encontraram nos stocks garrafas de 2009, pelo que se alguém tiver uma garrafa em casa faça o favor de se manifestar). E, vai-se a ver, todos os vinhos estavam de saúde e todos os vinhos testemunhavam a matriz climática de cada ano.

Só uma colheita levantou vagas suspeitas de TCA (acrónimo do composto químico 2,4,6-trichloroanisole, a que vulgarmente também chama de "rolha" no vinho), mas – acima de tudo – comprovaram que, com o tempo, as notas impositivas das barricas novas (chancela Quendera) desaparecem com o tempo e dão lugar aos aromas e sabores secundários da casta Castelão. Isto do papel das barricas novas é uma história sem fim.

Claro que, em 19 vinhos, houve colheitas que nos encantaram mais do que outras, sendo que foi curioso verificar que Jaime Quendera preferia sempre os anos mais quentes e com maturações perfeitas, enquanto nós arrastamos a asa por anos mais difíceis e imperfeitos, visto que deram origem a tintos mais frescos e algo vegetais, coisa que, de resto, até constitui um padrão com vinhos de outras regiões vitícolas (Bairrada ou Dão). Manias.

Entre as colheitas de 1998 e 2019, o perfil da casta, com menor ou maior intensidade, esteve sempre presente, enquanto os vinhos de 2020 e 2021 (comprem-nos, mas dêem-lhes descanso, por amor de Deus!) estão cheios de fruta primária e notas da barrica (cacau, cravinho e sucedâneos).

No mundo ideal, era agora que gostaríamos de fazer um brilharete num jantar de amigos com as colheitas de 1998 (frutos secos e fumados), de 2004 (notas de eucalipto como se fosse um Mouchão clássico), de 2005 (fumado e grande equilíbrio), de 2008 (tão aveludado que às cegas diríamos tratar-se de um Dão), de 2010 (concentrado mas cheio de especiarias), de 2014 (o melhor da prova por causa da complexidade, da frescura, das especiarias e dos taninos sedosos), de 2015 (por ser vegetal e ter taninos a morder) e de 2018, por ser um Castelão carregado de especiarias. Ou seja, de colheita para colheita, não há um Quinta da Mimosa igual ao outro.

Os primos "amealhavam", Leonor investia

E será que podíamos mostrar estes vinhos a amigos portugueses ou amigos estrangeiros que acham que o mundo começa e acaba com Pinot Noir e outras castas finórias? Pois, isso não seria possível porque estas colheitas já não se encontram à venda – eis o pecado grave do sector do vinho em Portugal: não guardar parte da produção para um segundo lançamento (em garrafas de 0,75 ml ou magnum).

Com uma estratégia destas os produtores ganhariam mais dinheiro (sim, sim cobriam os custos de empate de capital) e educariam os consumidores, que bem precisam e agradecem.

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Leonor Freitas e Jaime Quendera, na adega da Casa Ermelinda Freitas Matilde Fieschi
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A Casa Ermelinda Freitas factura hoje 40 milhões de euros por ano, que investe na compra de terras e, se possível, vinhas velhas Matilde Fieschi

Esta prédica nem se dirige à Casa Ermelinda Freitas que, para os devidos efeitos, nasceu no outro dia (o primeiro vinho engarrafado é de 1997), cresceu à conta da visão e do trabalho infinito de Leonor Freitas e que, a partir de um negócio de venda de vinho a granel herdado dos pais, avós e bisavós, criou uma empresa que factura hoje 40 milhões de euros por ano, emprega 100 trabalhadores e aplica os lucros, não em megalomanias de ricos, mas na compra de mais terras e, se possível, de vinhas velhas (150 hectares num universo total de 570 hectares).

Durante muitos anos, a mãe Ermelinda Freitas torceu o nariz à estratégia da filha Leonor. Os primos, que também tinham vinhas na região de Fernão Pó e vendiam o vinho a granel, “amealhavam dinheiro”, enquanto Leonor não parava de “gastar dinheiro em vinhas, adegas e acrescentos de adegas”.

Por estas e por outras, Leonor chegava à casa da mãe – cuja cozinha foi durante algum tempo o laboratório de Jaime Quendera e, por vezes, dava por falta de caixas de vinho que deveriam estar a estagiar numa altura em que não tinha uma adega em condições. Interrogada a mãe, esta não se desmanchava: “Então, precisamos ou não precisamos de vender vinho? E também é feio as pessoas perguntarem se há vinho, as garrafas estarem ali e a gente não as vender, acho eu.”

O sucesso da Casa Ermelinda Freitas também se deve ao terroir especial da Península de Setúbal, que permite produções de qualidade regulares e adaptadas ao mercado, e à capacidade técnica de Jaime Quendera, que devia ser estudada em diferentes níveis na academia (áreas de gestão e psicologia).

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