Déjà vu no Camboja: mais umas eleições fraudulentas e o Ocidente assiste impávido

Receamos que o Ocidente acabe por reconhecer mais umas eleições ganhas pelo primeiro-ministro Hun Sen e lhe dê a legitimidade internacional que tanto deseja. Fazê-lo teria um custo elevado.

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No último domingo, dia 23 de Julho, o mundo assistiu a mais umas eleições totalmente fraudulentas no Camboja. Este pseudo acto de democracia ao estilo soviético, num país que tem sido governado por um só homem desde 1985, visava apenas preparar o caminho para uma transição dinástica entre Hun Sen e o seu filho, Hun Manet. Actualmente líder do exército do país e com formação académica na Academia de West Point, na Universidade de Nova Iorque e na Universidade de Bristol, muitas pessoas esperam que a democracia cambojana possa renascer com a sua chegada ao poder – mas, não se deixem enganar, tal como aconteceu com Bashar al-Assad, na Síria, e Kim Jong-un, na Coreia do Norte, não será esse o caso. Hun Manet seguirá os passos do pai, que, durante quase quatro décadas, construiu uma estrutura de poder altamente centralizada, que dá prioridade ao engrandecimento de si mesmo e que tem pouco respeito pela democracia e pelos direitos humanos. Sob a vigilância de Hun Sen, as execuções extrajudiciais, a tortura, as detenções arbitrárias, os julgamentos sumários, a censura, a proibição de reunião e de associação e uma rede nacional de espiões e informadores tornaram-se um lugar-comum. É este o pano de fundo da democracia incipiente do Camboja e um ambiente a que a comunidade internacional parece incapaz de responder com determinação.

A transição formal entre Hun Sen e Hun Manet está prevista para o final do Verão, a tempo de o filho se dirigir à Assembleia Geral da ONU em Setembro. O facto de a comunidade internacional reconhecer esta transferência antidemocrática do poder, na sequência de umas eleições fictícias em que o principal partido da oposição foi formalmente proibido de apresentar candidatos, equivale a aceitar as violações sistémicas dos direitos humanos e o totalitarismo do regime. O Camboja já não é uma nação pluralista, tal como se encontra definido na sua Constituição: é apenas um Estado de partido único. Mais de um quarto dos candidatos às eleições deste ano têm ligações a membros do governo de Hun Sen. A oposição política tem sido sufocada no país.

Eu próprio passei os últimos sete anos em exílio. Na minha ausência, a administração de Hun Sen condenou-me a prisão perpétua e, no dia 31 de Maio, ameaçou publicamente matar-me com mísseis se regressasse ao meu país. Sou apenas uma das centenas de pessoas que Hun Sen ameaçou desta forma – e não são apenas ameaças. O Candlelight, o único partido credível da oposição, foi banido das eleições em Maio por uma questão técnica burocrática. Este ano, os seus membros têm sido atacados na rua por homens mascarados. Dissidentes políticos de toda a espécie têm sido alvo de ataques, entre os quais: o presidente do sindicato Chea Vichea, morto em 2004; ambientalistas, como os membros da ONG Mother Nature, detidos e presos em 2020; ou analistas políticos independentes como Kem Ley, morto a tiro em 2016. Kem Sohka, líder do nosso partido, o proibido Partido da Salvação Nacional do Camboja, foi condenado a 27 anos de prisão por acusações falsas. Tem havido também um ataque sistemático à imprensa livre do país, com jornais populares, como o Cambodia Daily e The Phnom Penh Post, a serem encerrados ou sujeitos a aquisições hostis por parte de aliados de Hun Sen. Este último foi mesmo vendido ao exterior, a um investidor malaio ligado ao primeiro-ministro; e, por conseguinte, mudou a sua linha editorial para apoiar a actividade do governo.

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Hun Sen e o filho Hun Manet: a comunidade internacional deve apoiar os democratas do Camboja REUTERS/Cindy Liu/File Photo

A campanha de Hun Sen para obstruir a liberdade de expressão dos cambojanos estende-se às redes sociais. No mês passado, apagou a sua conta no Facebook, na sequência de uma decisão do Conselho de Supervisão da Meta, que o proibiu de utilizar a plataforma durante seis meses, devido a um vídeo em que, mais uma vez, ameaçava mandar espancar os seus opositores. No dia seguinte, o Ministério dos Correios e Telecomunicações do Camboja anunciou que iria deportar de imediato um representante da Meta e que o Camboja iria cessar toda a cooperação com a empresa. Numa declaração posterior, todos os membros do Conselho de Supervisão foram proibidos de entrar no país. Nas últimas semanas, Hun Sen ameaçou bloquear totalmente o Facebook durante o período eleitoral, privando assim os cidadãos do acesso a um fórum livre de censura governamental. Isto acabou por não acontecer, mas Hun Sen foi explícito nos seus objectivos: impedir o contacto entre os líderes da oposição exilados e os cidadãos do país. Para o conseguir, foi introduzido o Portal Nacional de Internet, ao estilo Grande Firewall da China, que oferece um controlo geral do regime sobre qualquer actividade online.

Antes das eleições fraudulentas, levámos a cabo uma campanha para que os cambojanos em massa tornassem nulos os seus boletins de voto, em protesto contra o regime de Hun Sen e a ausência de uma oposição política alternativa. Tratava-se de uma acção que Hun Sen temia. Para mitigar os impactos de um acto destes, Hun Sen determinou que os boletins de voto nulos seriam uma infracção passível de multa de 20 milhões de riéis (cerca de 4500 euros) e acusou-me a mim e a outras pessoas, que defendiam este comportamento, até então legal, de tentar minar o processo eleitoral. Além disso, assegurou que as cabinas de voto fossem ocupadas apenas por membros do Partido do Povo do Camboja (CPP), no poder, adicionando assim mais um nível de intimidação. E tudo isto depois de uma série generalizada de detenções arbitrárias – centradas nos líderes locais do Candlelight, com inclusão das alas da juventude e das mulheres – e da deserção forçada de prisioneiros políticos – a alguns foram oferecidos cargos governamentais em troca da sua libertação, ou até mesmo o acesso a cuidados médicos que lhes foram anteriormente negados.

A comunidade internacional deve apoiar os democratas do Camboja. Quando se realizaram as primeiras eleições livres e justas em Junho de 1993, estes assinaram os Acordos de Paris como uma obrigação de garantir que as eleições cambojanas fossem livres e pacíficas. Estão a renegar essa promessa. Hun Sen deveria ser um pária internacional, mas presidiu à ASEAN pela terceira vez em 2022. Nesta qualidade, sob a falsa esperança de restauração da democracia, foi convidado a co-presidir uma cimeira com a UE nos EUA, o que conferiu ainda maior legitimidade ao seu regime, por parte do Ocidente. O Reino Unido acaba de assinar um acordo comercial de mil milhões de dólares (cerva de 900 mil milhões de euros) com o Camboja, enquanto a retirada parcial pela UE dos benefícios de isenção de direitos aduaneiros para os produtos cambojanos que entram na UE-27, por razões de direitos humanos e direitos laborais, afecta apenas 20% das exportações. Dada a flagrante violação das obrigações internacionais, a restrição destes privilégios especiais deve ser significativamente aumentada e devem ser impostas novas sanções, como o congelamento de bens, a altos funcionários envolvidos em violações dos direitos humanos.

Receamos que, apesar de se falar em monitorizar o desrespeito dos direitos humanos por parte de Hun Sen, o Ocidente acabe por reconhecer estas eleições fraudulentas e lhe dê a legitimidade internacional que tanto deseja. Fazê-lo teria um custo elevado, pois significaria encorajar ditadores em todo o mundo e falhar perante o povo cambojano e a ordem jurídica internacional. Isto não pode acontecer.

Sam Rainsy é o líder interino do Partido da Salvação Nacional do Camboja, o principal partido da oposição, que foi proibido de concorrer às eleições gerais de 2018 no Camboja. Vive exilado em Paris.

Tradução de Nelson Filipe

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