Sinéad O’Connor (1966-2023): a cantora que eternizou Nothing compares 2 u
O tema escrito originalmente por Prince celebrizou-a em 1990. Continuou nas bocas do mundo pelo talento e por diversas controvérsias. Morreu aos 56 anos.
Há canções que estão destinadas a ocupar um lugar diferenciado na nossa memória colectiva, mas que só chegam lá depois de serem interpretadas por outras pessoas que não os criadores originais. O autor de All along the watchtower é Bob Dylan, mas ele faz uma vénia à versão que surge quase no final de Electric Ladyland (1968), icónico último álbum do guitarrista Jimi Hendrix — tirando os muitos discos póstumos. Trent Reznor, cérebro dos Nine Inch Nails, praticamente não reconhece Hurt, faixa que encerra The Downward Spiral (1994), como sendo uma composição sua; diz ele que ela é de Johnny Cash, que com a sua voz cansada pegou naquelas letras atormentadas e gravou o equivalente musical a um impiedoso murro no estômago.
Neste contexto, podemos encontrar a irlandesa Sinéad O’Connor no mesmo patamar ocupado por Hendrix e Cash. Nothing compares 2 u foi, entre o ano em que foi gravada pela primeira vez (1985) e 1990, uma música de Prince e do grupo The Family, um projecto paralelo à carreira a solo do músico norte-americano. A partir de 1990, passou a ser de Sinéad O’Connor, que com a sua versão altamente vulnerável eternizou o tema, ascendendo ao estrelato pelo caminho. Sinéad morreu nesta quarta-feira aos 56 anos, noticiou primeiramente a imprensa irlandesa. A causa permanece desconhecida.
A artista teve uma vida marcada por uma luta longa contra vários problemas mentais. Diagnosticada com stress pós-traumático complexo e transtorno de personalidade limítrofe (borderline, em inglês), nunca foi avessa a conversar, de forma bastante aberta, sobre as suas batalhas pessoais.
Também nunca se importou de ferir sensibilidades. Dizia o que pensava, sem filtros — e tinha muito a dizer sobre abuso infantil, direitos humanos e religião, por exemplo.
O famoso momento que protagonizou em 1992 no programa televisivo Saturday Night Live — momento que marcou de forma decisiva um “antes” e um “depois” na sua trajectória — descreve bem o seu espírito combativo e resiliente. Cantou a cappella uma versão de War, tema de Bob Marley. No fim, tirou do bolso uma foto do Papa João Paulo II, que passara anos no quarto da sua mãe abusiva, e rasgou-a. “Fight the real enemy” (“Combatam o verdadeiro inimigo”), disse depois, olhar decidido a fitar a câmara.
“Nos anos 1990, tinham já vindo a público na Irlanda muitos crimes contra crianças cometidos por membros da Igreja Católica. Só se falava disso na Irlanda. Naquela época, o Vaticano ainda achava que eram questões da Igreja para serem resolvidas dentro da Igreja. Os casos iam sendo denunciados, mas sucessivamente abafados”, escreveu no PÚBLICO, em Janeiro de 2022, a cineasta Teresa Villaverde, num texto de opinião sobre Sinéad.
A irlandesa era uma estrela mundial quando rasgou a foto do Papa em directo para a América ver. Nothing compares 2 u, com um vídeo marcante em que um close-up íntimo mostra a cantora de cabeça rapada a verter lágrimas solitárias e a cantar o tema com palpável vulnerabilidade, era um sucesso de todo o tamanho. I Do Not Want What I Haven’t Got (1990), o seu segundo disco — e aquele em que podemos escutar o célebre tema —, havia sido distinguido pelos Grammys. Esse momento pôs a adoração do público generalizado em causa.
Houve gente a destruir os seus discos. Duas semanas depois do sucedido, Sinéad foi vaiada por milhares de pessoas num concerto de tributo a Bob Dylan — não que isso a tivesse dissuadido de, corajosamente, voltar a cantar War a cappella (e depois acabar com palavras suas sobre os crimes da Igreja). “Ela foi a primeira celebridade na cultura mainstream a ser cancelada”, afirmou à NPR, em 2021, a crítica de música Jessica Hopper.
Mas muitas vezes o tempo provava que ela estava “certa”, conforme escreveu, também em 2021, o The Guardian, num texto a propósito do seu livro de memórias Rememberings, editado nesse ano. Em 2010, o Papa Bento XVI endereçou a todas as vítimas um pedido de desculpas pelas décadas de abuso sexual praticado por padres católicos na Irlanda.
“As pessoas dizem: ‘Deste cabo da tua carreira’”, recordava Sinéad ao jornal britânico no mencionado artigo. “Mas na realidade, estão a falar da carreira que outras pessoas tinham em mente para mim. Eu dei cabo da casa em Antígua e Barbuda que a malta da editora discográfica queria comprar. Dei cabo da carreira deles, não da minha.”
Mãe abusiva
Nascida a 8 de Dezembro de 1966, Sinéad O’Connor cresceu num lar abusivo (segundo a própria, tanto fisicamente como sexualmente). Em Rememberings, a mãe, com quem Sinéad se parecia fisicamente, é lembrada de forma particularmente azeda. A cantora ao The Guardian: “É por causa das semelhanças físicas que continuo a rapar a cabeça. Se deixar o cabelo crescer, fico mais parecida com ela, e não gosto de a ver ao espelho.”
O primeiro álbum da irlandesa, The Lion and the Cobra, saiu em 1987. Dois anos depois, uma nomeação aos Grammy colocou Sinéad num palco mediático — onde aproveitou para deixar uma marca. O ano 1989 foi o primeiro em que os Grammy atribuíram o prémio por Melhor Performance Rap. Mas a organização decidiu não transmitir na TV a respectiva actuação na cerimónia. Sinéad, na hora de actuar, apareceu com o logótipo dos Public Enemy num dos lados da sua cabeça rapada.
Depois vieram o sucesso de I Do Not Want What I Haven’t Got, que em diversos países ascendeu ao topo nas tabelas de vendas, e a foto do Papa. “Sinto que ter um álbum que atingiu o primeiro lugar fez a minha carreira descarrilar, e rasgar a foto recolocou-me no caminho certo”, escreveria no livro de memórias.
Sinéad fazia pop, mas também fazia o que lhe apetecia. Gravou canções tradicionais irlandeses, explorou o reggae. Em termos de popularidade, nunca voltaria ao patamar de I Do Not Want What I Haven’t Got, mas, segundo o que dizia, isso não figurava nas suas preocupações. Novamente a conversa com o The Guardian: “A única razão para fazer um álbum é porque vais endoidecer se não o fizeres. Se o fazes porque queres ter fama ou dinheiro, ou porque queres impressionar o tipo ao fundo da esquina, não vai ser um álbum bom.”
Apesar de em 1992 ter rasgado a foto do Papa João Paulo II, Sinéad sempre foi uma pessoa de fé — tanto que em 1999 foi ordenada sacerdotisa por um culto católico independente, não reconhecido pelo Vaticano. Mais tarde, converteu-se ao islão.
Marcada por altos e baixos, a sua saúde mental enfrentou uma crise profunda em 2017, quando publicou vídeos nas redes sociais em que surgia num estado frágil e confessava estar a atravessar uma fase de grande turbulência. “A minha vida inteira está a girar em torno de não morrer, e isso não é viver”, diria.
Em 2021, quando foi entrevistada pelo The Guardian, dizia estar num bom lugar. “Mas não sou estúpida ao ponto de pensar que não terei recaídas. Sou uma sobrevivente de abuso em recuperação — e isso é o trabalho de uma vida. Não é como se tu renascesses ou algo assim.” Nessa entrevista, apesar dos temas conturbados, evidenciava o seu sentido de humor.
O’Connor teve quatro filhos, o terceiro dos quais cometeu suicídio em Janeiro de 2022, aos 17 anos.
Assim termina Teresa Villaverde o seu artigo de opinião sobre a cantora: “Há muita gente, e muitas instituições, que devem a Sinéad O’Connor um pedido de desculpa. Darão certamente — uns dias ou uns anos depois da sua morte.”
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