Sinéad
Há muita gente, e muitas instituições, que devem a Sinéad O’Connor um pedido de desculpa. Darão certamente – uns dias ou uns anos depois da sua morte.
No dia 16 de Outubro de 1992 no Madison Square Garden, em Nova Iorque, lotado com mais de vinte mil pessoas, celebrava-se num grande concerto os trinta anos de carreira de Bob Dylan. Sinéad O’Connor era uma das intervenientes nesse grande espectáculo, tinha vinte e cinco anos. É anunciada por Kris Kristofferson e, à medida que se aproxima do proscénio, começam a ouvir-se os apupos. Os músicos, que já estavam antes no palco, tocam a introdução programada, tocam-na uma e duas vezes, tentam recomeçar algumas vezes. Sinéad não canta, é impossível. São quase vinte mil os que a apupam. Se ela cantasse ninguém a ouviria. A organização pede a Kris Kristofferson que a vá tirar de lá. Ele vai, mas para lhe dizer ao ouvido “não deixes que eles acabem contigo”, ela responde “não deixo”. Sinéad fica de novo sozinha, aproxima-se ainda mais do limite do palco. Fica dois minutos inteiros, direita, de mãos atrás das costas a olhar o público recebendo os apupos e os insultos com o que parece ser uma calma celestial. Depois manda calar os músicos, arranca os auriculares dos ouvidos, pede para subirem o som do seu microfone e começa a cantar a capella, entre o canto e o grito, uma sua versão de War, de Bob Marley, onde ela junta, no final, à letra de Marley, palavras suas sobre os crimes de abusos contra as crianças.
Volta as costas ao público e sai dali. Kristofferson vem abraçá-la, e ainda em cima do palco, mas já num lugar onde o público não a consegue ver, vomita.
Antes de no resto do mundo, nos anos noventa do século passado, tinham já, na Irlanda, terra de Sinéad, vindo a público muitos crimes contra as crianças cometidos por membros da Igreja Católica. Só se falava disso na Irlanda. Naquela época, o Vaticano ainda achava que eram questões da Igreja para serem resolvidas dentro da Igreja. Os casos iam sendo denunciados, mas sucessivamente abafados.
Sinéad cresceu com uma mãe que a espancava, e insultava. Uma percentagem importante do seu trabalho é dedicada às crianças. A mãe morreu nova. Quando Sinéad foi com os seus irmãos desmanchar a casa da mãe, só quis ficar com uma coisa: uma foto do Papa João Paulo II que a mãe tinha na parede do quarto.
Duas semanas antes do concerto no Madison Square Garden, Sinéad foi convidada do programa televisivo Saturday Night Live, cantou a capella a sua versão de War de Marley, e no fim tirou do bolso a foto que tinha estado anos na parede do quarto da mãe, e rasgou-a em quatro pedaços em grande plano em directo na televisão. Foi banida para sempre do canal de televisão NBC. Nos EUA, as pessoas juntavam-se na rua para queimar tudo o que tinham em casa que tivesse que ver com ela, CD’s, posters, roupa com a sua cara, etc..
Poucas pessoas ficaram do seu lado, umas por não concordarem com o que fez, outras por simplesmente a acharem louca e não se quererem meter no assunto. Continuou a sua vida e o seu trabalho, mas nunca mais foi vista como antes de ter rasgado a fotografia. E gravou muito pouco a partir daí.
Um dia um grande como ela foi a Dublin para a abertura dos Jogos Paralímpicos, e disse quando lá chegou que queria conhecer Sinéad O’Connor – era Muhammad Ali. Convidou-a para ir com ele à abertura dos Jogos, foram. Grandes, sim, mas Ali era a força forte, e O’Connor a força frágil.
Já na sua idade adulta foi-lhe diagnosticada mais do que uma doença mental. Andou de tratamento em tratamento, de interrupção em interrupção. E quando se é uma criança violentada, anda-se quase sempre a vida toda de mão dada com essa criança.
Nos últimos anos, quem quis, pôde vê-la desfeita nas redes sociais desta vida, fazendo apelos desesperados em crises agudas da sua doença. Não devíamos ter visto. Aqueles apelos não eram para nós. É a crueza das redes sociais. Foi usada por aquele chamado Dr. Phil num dos seus programas de televisão. Quando as crises passaram, Sinéad disse que estava profundamente arrependida de ter ido àquele programa.
Sinéad estava melhor, e a viver num lugar calmo na Irlanda. Tinha programada uma pequena digressão, para ver como corria e se faria outras, para 2020. Veio esta pandemia, tudo cancelado. Acabou de escrever Rememberings, uma biografia, em Abril de 2020.
Sinéad teve quatro filhos, três rapazes e uma rapariga. O mais velho nasceu quando ela tinha vinte anos, três semanas antes de sair o seu primeiro álbum. O seu terceiro filho, Shane, suicidou-se no passado dia 7. Sinéad teve que ser internada por não estar a conseguir lidar com este horror de ter perdido o seu filho, mas já saiu do hospital e publicou nas suas redes sociais um apelo para que ninguém siga o exemplo do seu filho.
Há muita gente, e muitas instituições, que lhe devem um pedido de desculpa. Darão certamente – uns dias ou uns anos depois da sua morte.