Os filhos dos ‘retornados’ continuam a comer pirão
Nasceram, cresceram, namoraram, casaram, sepultaram pais e avós lá e tudo lá ficou. Fugiram à pressa e despediram-se de alguns corajosos amigos que por lá permaneceram.
Gira discos ligado, era Bonga todas as manhãs de sábado, na rotina em que a mãe limpava a casa e o pai ia fazer biscates de eletricidade, erguer postes da luz, acartar pedras. Era um angolano, branco, a quem os portugueses torciam o nariz. Cresceu lá, onde o pôr de sol parecia ter uma beleza infinita e onde as mangas lhe caiam aos pés.
A mãe usava saias demasiado curtas e era olhada de soslaio nas filas dos inexistentes apoios. Loira de olho azul? "Você não é ‘retornada’! Não precisa!" Mas precisava daquele saquinho com uma maçã e um iogurte. Estava grávida e dormiu na estação de Santa Apolónia dias a fio.
Não tinham construído nada em Portugal nem conheciam o país. À chegada, gostaram das laranjas e das uvas, mas de tudo o resto, choraram. As cores quentes, eram agora cinzentas e sombrias e o calor de África tinha ficado lá. Mas veio o otimismo, o sangue na guelra para começar de novo. E por cá, nas aldeias mais remotas, de horizontes fechados, foram encontrando outros como eles. Reuniam-se em pensões, em casas dos retornados, para festejar a juventude.
Eram jovens, bonitos e bronzeados e davam nas vistas por onde passavam. Alguns tolos chamavam-lhes brasileiros, por causa do sotaque. Pareciam estar mais à frente dos que aqui estavam. E estavam. Passaram esses valores e essa educação diferente aos filhos. "Amigo é irmão. Não sejas invejoso. Dança com quem quiseres." E como eles dançavam ao som de Duo Ouro Negro! Agarrados, colados, eróticos, com chama no corpo e na voz. Eram diferentes, eram mais livres.
Foram-se adaptando, com muitas dificuldades financeiras, sem saberem onde e a quem se dirigir, para começar de novo, para voltar a ter raízes num país que não era o deles. Angola também não lhes pertencia, mas eles nasceram e cresceram lá, muitos indiferentes às questões do racismo e do colonialismo, que diziam já ser coisa de um passado distante.
Eram todos irmãos. E não queriam deixar Angola. Foi arrancar-lhes a pele e deixá-los a sangrar em carne viva. Não admitem ser chamados de ‘retornados’ porque aquele era o país deles. Nasceram, cresceram, namoraram, casaram, sepultaram pais e avós lá e tudo lá ficou. Fugiram à pressa e despediram-se de alguns corajosos amigos que por lá permaneceram: eu volto daqui a uns dias… Não voltaram mais, até hoje.
E todos os dias, em Portugal ao longo destas décadas, após o 25 de Abril, os filhos e as filhas destes retornados riam e choravam com as histórias contadas de um país que nunca conheceram, mas que também eles, como que por osmose, sentem como seu.
Há uma parte nos filhos dos ‘retornados’ que continua ligada ao passado. Foi uma educação inteira a ouvir falar de um amor antigo. Angola. Os rios, o mar, as praias, a fruta, o pirão, a moamba e os quiabos, estes a serem cozinhados também por cá, todos os domingos. Faço, sem falsas modéstias, um bom pirão, sem grumos, com farinha de milho ou farinha de mandioca, cozinho o feijão no óleo de palma, e estes continuam a ser os ingredientes da minha vida.
Entre os anos de 1974 a 1975, através de barco e avião, chegaram a Portugal, meio milhão de pessoas, oriundas das ex-colónias. Eram apelidadas de ‘retornados’, designação que muitos rejeitam, porque não estavam a regressar a Portugal. Não nasceram sequer em Portugal nem conheciam o país.
Os filhos dos retornados herdaram um trauma difícil de tratar. Viram os pais chorar ao ver as fotografias das casas que foram suas, destruídas, das estradas degradadas, dos cinemas e dos teatros ao abandono. Angustiados pela angústia dos pais, os filhos e as filhas dos ‘retornados’ tentam também (eles e elas), se reencontrar, sem sucesso, tantos anos depois, e a conclusão, a mesma de sempre: Não são como os pais. Eu não cresci assim…
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990