Fecharam a “segunda Casa da Música do Porto”: “É matar a cultura”

Câmara do Porto mandou selar 105 das 126 salas do centro comercial onde cerca de 500 músicos têm sala de ensaio. Artistas e lojistas prometem lutar. Ornatos Violeta são uma das bandas “desalojadas”.

PP - 18 JULHO 2023 - PORTO - ENCERRAMENTO DO CENTRO COMERCIAL STOP SITIO DE BANDAS DE MUSICA 
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Artistas protestaram contra encerramento do centro comercial Stop Paulo Pimenta
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Manifestação juntou centenas de pessoas no Porto Paulo Pimenta
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Mais de 100 espaços do centro comercial foram selados pela polícia Paulo Pimenta
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As portas do centro comercial Stop não vão, para já, fechar. Mas a maioria das fracções foi selada na manhã desta terça-feira, por ordem da Câmara do Porto. “Esvaziou-se a alma” do Stop, a quem muitos chamam a segunda Casa da Música do Porto, e isso é uma forma de “matar” o projecto que é casa para cerca de 500 músicos da cidade. O lamento é de Miguel Sousa, ao lado de colunas de sons e alguns instrumentos que decidiu retirar da sala onde ensaia desde 2020. O músico teve a “lotaria” de não ver o seu espaço selado, mas com concerto agendado já para este sábado, e perante as incertezas do porvir, decidiu levar o material essencial. Sobram 21 salas abertas no Stop. Mas sobreviverão num centro quase fantasma? E que futuro existe para os músicos do Porto?

As perguntas dominaram as conversas ao longo de todo o dia. Ao desânimo e emoção juntaram-se revolta e palavras de ordem, acompanhadas por inúmeros cartazes. “Morto.”, lia-se num dos mais icónicos, copiando o design do município gerido por Rui Moreira.

Às 18 horas, uma manifestação foi ganhando forma e algumas centenas de pessoas juntaram-se, cortando o trânsito da Rua do Heroísmo, onde se cantava "o Porto não está morto" e se iam improvisando discursos sobre o despejo. Rui Moreira foi o principal visado das críticas.

Manifestação juntou centenas de pessoas
Na próxima segunda-feira, artistas vão protestar de novo, desta vez em frente à Câmara do Porto
Espaço fica na Rua do Heroísmo
Centenas de artistas ficaram sem sala de ensaio numa altura em que têm muitos espectáculos agendados
Protestos duraram o dia todo e músicos prometem não desistir da sua "casa"
Ninguém foi avisado previamente de que as salas iam ser fechadas
Stop era a sala de ensaios de cerca de 500 músicos da cidade
Muitos chamam-lhe a segunda Casa da Música da cidade
Artistas falam de ataque à cultura
Manifestação foi ruidosa e palavras de ordem incidiram sobre Rui Moreira
Morto. era a palavra lida em vários cartazes, aludindo à frase promocional do município
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Manifestação juntou centenas de pessoas

"A situação é grave", admitiu Rui Guerra, da Associação de Músicos do Stop. O representante exigiu respostas do município e apelou aos músicos para não retirarem os seus bens das salas. Mariana Costa, da associação Alma, lamentou também a ausência de respostas da autarquia. "Não nos podem ignorar", apontou um músico de megafone na mão. Na próxima segunda-feira às 14 horas haverá nova manifestação, desta vez em frente aos Paços do Concelho.

"A sede da Remax"

Entre os “despejados” do Stop estão os Ornatos Violeta. A banda portuense tem usado uma das salas para preparar os concertos desta temporada – vai estar em Oeiras e Vilar de Mouros já em Agosto – e tem todo o material ali guardado. O futuro é para já uma incógnita, diz Pedro Santos, baterista dos Ornatos conhecido como Kinorm, à porta do centro comercial. O fim deste projecto é “um problema gigante” para centenas de músicos e representa “uma amputação na capacidade de trabalho”. Na cidade, sublinha, “não há alternativas” ao Stop: “Se isto existisse em Nova Iorque era incrível, mas no Porto parece que somos os parentes pobres.”

Nas redes sociais, a rapper Capicua foi incisiva. “O Porto podia ser uma cidade incrível. Tem massa crítica, carisma, artistas incansáveis e uma beleza ímpar. O problema é que escolhe sempre uns tecnocratas provincianos como autarcas. Era uma cidade. Hoje é a sede da Remax”, escreveu no Instagram.

A “jogada de mestre” da autarquia, que faz os músicos retirarem os seus bens à pressa e deixarem de pagar a renda, desfaz vínculos e abre caminho para “fechar o Stop de vez”, lamenta a música portuense.

Pedro Abrunhosa escreve no PÚBLICO que está em causa o tipo de cidade que queremos construir. E Lucas Argel diz que o Porto tratou uma das suas maiores jóias culturais com o desprezo dos bárbaros.

Músicos ficarem sem salas de ensaio e retiraram alguns dos seus bens Paulo Pimenta
Centro comercial funciona há duas décadas como uma espécie de laboratório de música Paulo Pimenta
Polícia começou a selar as salas ao início do dia Paulo Pimenta
Encerramento do Stop era há muito temido pelos artistas
Encerramento do Stop era há muito temido pelos artistas Paulo Pimenta
Encerramento do Stop era há muito temido pelos artistas Paulo Pimenta
Encerramento do Stop era há muito temido pelos artistas Paulo Pimenta
Encerramento do Stop era há muito temido pelos artistas Paulo Pimenta
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Músicos ficarem sem salas de ensaio e retiraram alguns dos seus bens Paulo Pimenta

Ao longo do dia, dezenas de músicos foram retirando os seus bens das salas de ensaio. Depois de o portão verde estar encerrado durante cerca de duas horas e meia, Leitão da Silva, comandante da Polícia Municipal do Porto, mandou abrir e fez um pequeno comunicado aos músicos e lojistas. Até ao final do dia, quem tivesse o seu espaço selado podia, se quisesse, levantar os seus bens, desde que acompanhado por um agente de autoridade. Nos dias seguintes teria de o fazer mediante um agendamento na Câmara do Porto, como constava no aviso colado nas portas das salas fechadas.

Nenhum dos músicos com quem o PÚBLICO falou foi previamente avisado desta acção pelos seus senhorios, que dizem também não ter sido notificados.

Quando a Polícia Municipal começou a selar os espaços, por volta das 10 da manhã, Rui Moreira preparava-se para apresentar o seu projecto de abrandamento da velocidade em ruas do centro histórico. Os jornalistas tinham sido convocados para uma conferência de imprensa no Largo Amor de Perdição, mas o gabinete de comunicação já tinha preparado o comunicado sobre o Stop para enviar às redacções. Quando o fez, perto do meio-dia, já o autarca estava a salvo das perguntas dos repórteres.

A autarquia escrevia no comunicado que o encerramento de 105 das 126 lojas acontecia “por falta de licenças de utilização para funcionamento”. “Este é um processo que se arrasta há mais de dez anos, tendo o município vindo, ao longo do tempo, a acumular queixas por parte da vizinhança.”

Rui Moreira escapou a perguntas, mas não a críticas. Na Rua do Heroísmo, houve até quem se lembrasse de deixar uma, em cartaz amarelo, usando palavras do seu ex-vereador da Cultura, Paulo Cunha e Silva, que em 2105 classificou o Stop como “um dos ecossistemas culturais mais interessantes [da cidade]”. “Não ao Stop do Stop”, “estão a matar a cultura” ou “especulação dissimulada” eram outras das palavras de ordem afixadas à entrada do histórico espaço.

"Fiquei sem o meu emprego"

Nils Meisel nota uma triste ironia. A sua banda, Sereias, recebeu recentemente um apoio do município para se internacionalizar. E, agora, vê o mesmo município retirar-lhe o espaço de ensaio, hipotecando o futuro. “Estou aqui há mais de dez anos. Somos profissionais, precários mas profissionais. É matar a cultura”, diz.

No mesmo dilema está José Gomes. Sem qualquer aviso, o músico ficou sem a sua sala. Ou, por outras palavras, sem forma de sobrevivência: “Fiquei sem o meu emprego. É isso que está em causa para muitos de nós.” No Porto, diz, repetindo as queixas unânimes entre os artistas, não há salas para ensaiar para toda aquela gente. E as poucas que há são a preços inacessíveis.

Executivo de Rui Moreira mandou fechar salas que não tinham licença de funcionamento Paulo Pimenta
Stop era a sala de ensaios de cerca de 500 músicos da cidade Paulo Pimenta
Stop era a sala de ensaios de cerca de 500 músicos da cidade Paulo Pimenta
Stop era a sala de ensaios de cerca de 500 músicos da cidade Paulo Pimenta
Stop era a sala de ensaios de cerca de 500 músicos da cidade Paulo Pimenta
Stop era a sala de ensaios de cerca de 500 músicos da cidade Paulo Pimenta
Stop era a sala de ensaios de cerca de 500 músicos da cidade Paulo Pimenta
Stop era a sala de ensaios de cerca de 500 músicos da cidade
Stop era a sala de ensaios de cerca de 500 músicos da cidade
Stop era a sala de ensaios de cerca de 500 músicos da cidade
Stop era a sala de ensaios de cerca de 500 músicos da cidade
Stop era a sala de ensaios de cerca de 500 músicos da cidade
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Executivo de Rui Moreira mandou fechar salas que não tinham licença de funcionamento Paulo Pimenta

Também alguns lojistas do exterior do centro comercial foram afectados por esta acção. Natália Trindade não escondia a emoção, ao lado de uma marquesa e boiões de cera que conseguiu “salvar” da sua perfumaria antes de a polícia a encerrar. “É o meu ganha-pão, fico sem nada”, desabafou.

BE e CDU solidários

A deputada municipal do Bloco de Esquerda Susana Constante Pereira esteve no local o dia todo, mostrando a sua solidariedade com os artistas. Ao fim da tarde, também o vereador Sérgio Aires esteve no Stop. Para a bloquista, a acção do executivo de Moreira é incompreensível, numa altura em que parecia haver diálogo entre o município e os representantes dos músicos. “Lembra Rui Rio nos tempos do Rivoli. É uma visão da cidade em que tudo tem de ser programado pelo executivo e não se permitem iniciativas orgânicas.”

Rita Duarte, eleita da CDU na junta de freguesia do Bonfim, sublinha a importância do Stop para a cidade: “Não há outra estrutura destas na cidade. Há espaços aqui e acolá e os preços sofrem de uma brutal especulação imobiliária não compatível com os rendimentos desta gente.” Em comunicado a CDU Porto considerou "inaceitável" a acção de Rui Moreira, "nas costas de todos".

Para Mariana Costa os argumentos da autarquia não batem certo. Até porque mudam ao longo do tempo. Se a questão da segurança era a mais relevante há muito pouco tempo, agora alega-se o incómodo provocado aos vizinhos. "Não há transparência neste processo", acusa a representante de uma das associações de músicos. O interesse imobiliário do espaço era comentado entre vários dos artistas e lojistas.

O administrador do condomínio do edifício, Ferreira da Silva, lamentou o desfecho do caso numa altura em que havia diálogo, embora admita a “legitimidade” da autarquia para fechar as salas. O próprio edifício não tem licenças, disse aos jornalistas, mas a sua relevância cultural permitiu arrastar a situação durante anos. Enquanto falava à comunicação social, Ferreira da Silva foi vaiado por vários artistas, que o acusavam de conivência com a autarquia. Sem reagir e admitindo um problema de difícil resolução, o administrador do espaço rematou com uma hipótese de futuro: “Se calhar vamos ser outro Dallas.”

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