João Donato (1934-2023), figura histórica da música brasileira

Pianista, cantor, compositor, arranjador, nome histórico da música brasileira envolvido nos alvores da bossa nova, João Donato morreu no Rio de Janeiro, esta segunda-feira. Tinha 88 anos.

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João Donato Mauricio Santana/Getty Images
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Tinha concertos marcados para Setembro, em São Paulo, e ainda em 2022 lançara um novo álbum, a juntar a uma longa lista. Mas não resistiu aos problemas de saúde que o vinham afectando, nomeadamente uma infecção pulmonar. João Donato, pianista, cantor, compositor e arranjador, nome histórico da música brasileira que se envolveu nos alvores da bossa nova sem se prender a esse ou a outros estilos musicais, morreu esta segunda-feira no Rio de Janeiro, notícia confirmada pela família à imprensa brasileira. Donato estivera em Portugal várias vezes, a apresentar trabalhos seus ou integrado num colectivo de músicos.

João Donato nasceu em Rio Branco, no estado brasileiro do Acre, em 17 de Agosto de 1934, começando por volta dos 6 a 7 anos a tocar acordeão. A sua primeira composição, aos oito anos, foi uma valsa: Nini, nome de uma paixão infantil. Filho de um major da aeronáutica, quando o pai foi transferido passou a viver no Rio de Janeiro, a partir dos 11 anos. E foi aí também que começou a conhecer outros músicos e a trabalhar mais assiduamente na música, profissionalizando-se aos 17 anos e criando depois os seus próprios grupos. Ainda nos anos 1950, viveu no México, depois em São Paulo, de novo no Rio de Janeiro e esteve nos Estados Unidos, num casino do Nevada, onde cruzou o jazz com as músicas do Caribe, integrando as orquestras de Mongo Santamaría, Johnny Martinez, Cal Tjader e Tito Puente.

Acompanhou os alvores da bossa nova, não se deixando prender a estilos. Tocou com, além dos músicos já referidos, João Gilberto, Gilberto Gil, Bud Shank, Nelson Riddle, Chet Baker ou Eumir Deodato, entre muitos outros, somando uma vasta discografia. O primeiro disco foi Chá Dançante (1956), antes de gravar dois álbuns que ficaram como referência para a história: Muito à Vontade (1962) e A Bossa Muito Moderna de João Donato (1963).

Nos últimos quinze anos, gravou dez discos. Primeiro Sambolero, com Trio (2008), que lhe valeu um Grammy Latino em 2010. A par desse, gravou Os Bossa Nova, com Marcos Valle, Carlos Lyra e Roberto Menescal (2008), seguindo-se Água, com Paula Morelenbaum (2010); Aquarius, com Joyce Moreno (2012); Bluchanga (2015); Donato Elétrico (2016), disco que apresentou ao vivo em 2019 em Lisboa; Sintetizamor, com o seu filho Donatinho (2017), Síntese do Lance, com Jards Macalé (2021) e Serotonina (2022), o último.

"Faço isto porque gosto"

Das várias vezes em que actuou em Portugal, deixou no ar uma contagiante boa disposição e uma espantosa jovialidade, como se não lhe pesasse o avanço dos anos. Em 2009, actuou na Casa da Música, junto com Emílio Santiago e Joyce; em Março de 2013 apresentou-se em Lisboa, no Espaço Brasil da LxFactory; em 2019 actuou no B.Leza, com quatro dos músicos da banda Bixiga 70 (Décio 7, baterias; Marcelo Dworeck, baixo; Maurício Fleury, guitarras; e Douglas Antunes, trombone); e em Outubro de 2022 voltou para dois concertos em salas maiores: Casa da Música (Porto) e Tivoli BBVA (Lisboa), com o seu trio: Ricardo Pontes (saxofone e flauta), Renato Massa (bateria) e Guto Wirtti (contrabaixo). A juntar à voz e ao piano de Donato, estiveram dois convidados: António Zambujo e Carminho.

O disco que então o trouxe, Serotonina, tinha sido gravado durante a pandemia, entre finais de 2020 e o início de 2022, e Donato planeava gravar mais dois. “Faço isto porque gosto”, disse ele ao PÚBLICO, na altura. “Agora mesmo já me estão convidando a reunir material para gravar mais um outro disco.” O título ajustava-se à sua personalidade. “Tenho uns amigos na Colômbia que me disseram que a minha música tinha serotonina.” Foi pesquisar e descobriu que era um neurotransmissor associado ao (bom) humor. E a música, para ele, podia provocar esse efeito. “Porque essa é a finalidade da música: tornar o outro feliz. Ter música para ganhar dinheiro, arranjar namoradas ou ficar famoso e sair nas revistas? A finalidade da minha música é tornar o outro feliz. A música tem essa missão. Se você ouve uma música de que gosta, você se sente bem com aquilo. E é isso queremos alcançar.”

Foi isso que alcançou, ao longo da sua extensa carreira. Sempre activo, até ao final, e com uma curiosidade musical que o levou a trabalhar com músicos de várias gerações e estilos. As reacções à sua morte, publicadas na imprensa brasileira, sublinham as suas qualidades como músico e ser humano. “Um homem sensível e único, criador de um estilo próprio com um piano diferente de tudo que já vi”, escreve Marisa Monte. “Um dos seres humanos mais incríveis que conheci”, diz Marcelo D2. Já Geraldo Azevedo afirma que a “sua obra segue eterna na história da música brasileira”, enquanto o Presidente do Brasil, Lula da Silva, se refere a Donato como “um dos génios da música brasileira”, lamentando que o Brasil tenha perdido, com a sua morte, um dos seus “maiores e mais criativos compositores”.

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