Morreu João Gilberto, o autor da batida que deu o som à bossa nova
João Gilberto, o pai da bossa nova, considerado um músico genial, morreu neste sábado no Rio de Janeiro, aos 88 anos. O artista estava isolado e sem dar concertos há anos.
No mesmo dia em que, no Coliseu de Lisboa, o cantor brasileiro Pierre Aderne rendia homenagem a João Gilberto, cantando Uma Casa Portuguesa com o mesmo arranjo com que ele a cantara naquela sala, em 1984, o genial criador da batida que deu origem à bossa nova morria no Brasil, com 88 anos. A causa da morte não foi divulgada, segundo jornais como O Globo, mas a edição online da Época adiantava que esta podia ter sucedido durante exames médicos, que teriam corrido mal.
João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, nascido em Juazeiro, no estado brasileiro da Bahia, a 10 de Junho de 1931, é considerado o fundador legítimo da bossa nova, já que a sua batida de violão, à data revolucionária e inconfundível, esteve na origem da eclosão do movimento. O mais curioso é que ele tenha sido convidado, em 1951 (numa altura em que cantava na Rádio Sociedade da Bahia) a substituir o vocalista dos Garotos da Lua, Jonas Silva, porque este “cantava baixinho”. João voou então da Bahia para o Rio, aonde nunca tinha ido, e aos 19 anos entrou no grupo. Nessa altura, João Gilberto admirava cantores como Lúcio Alves ou Orlando Silva, cuja voz chegou a imitar num disco obscuro, em que gravou Quando ela sai e Meia luz.
Ao mesmo tempo, arranjaram-lhe emprego como escriturário na Câmara de Deputados, mas a desatenção e a falta de assiduidade fizeram-no perder os dois empregos. Começou então, para João Gilberto, uma espécie de descida aos infernos: sem trabalho, sem dinheiro, passou fome, actuou em festas onde até teve de se vestir de palhaço para sobreviver e gravou jingles publicitários. Só após um longo período, onde teve de enfrentar inúmeras adversidades, acabou por se recolher em Diamantina, onde tinha uma irmã mais velha, e aí permanecer oito meses como um monge. Foi de lá que, depois de insistentes ensaios onde se fechava horas a fio no quarto só com o seu violão, que um dia voltou a Juazeiro e depois ao Rio. E trazia a chave.
A chave era uma batida de violão como nunca ninguém ouvira. Deram-lhe uma morada, a de Roberto Menescal, João bateu, perguntou se não havia um violão por lá, mandaram-no entrar e então ele tocou duas canções que tinha escrito: Hô-bá-lá-lá e Bim bom. Foi um espanto. E a palavra espalhou-se. Sugeriram que ele gravasse. E disseram-lhe para procurar o maestro da Odeon, que não era outra senão Tom Jobim. Gravou então um single, Chega de saudade, em 1958.
Mas antes foi chamado a participar num disco muito marcante para a época, Canção do Amor Demais, de Elizete Cardoso, com Vinicius e Tom a soprarem as brasas. O sucesso, porém, chegaria mais tarde: se o single de João vendera uns 15 mil exemplares, o seu primeiro álbum, também intitulado Chega de Saudade, vendeu 35 mil logo à cabeça. E o boom da bossa nova começou aí, com inúmeros músicos a dizerem-se influenciados por João Gilberto (ainda hoje, Chico Buarque, Caetano Veloso ou Gilberto Gil o veneram, sem hesitar) e com uma horda de seguidores a darem o seu contributo pessoal ao novo som do Brasil. Com a marca de João.
“O samba-canção já produzira muitas canções que antecipavam a bossa nova. Só faltava a batida revolucionária do João”, resumiu recentemente à BBC o jornalista e escritor Nelson Motta. E ainda agora Zuza Homem de Mello, num depoimento para O Estado de S. Paulo, escreveu que “João Gilberto mostrou ao mundo uma nova bossa de cantar e de tocar o samba, o baião, a marchinha, a valsa, o samba-canção, o foxtrote, um hino, uma cantiga.” Foi, e disso ninguém hoje duvida, o génio providencial que mostrou ao mundo algo ainda por inventar.
Da obra de João Gilberto fazem parte os álbuns Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961), ainda na fase ascendente e descendente da bossa nova (foi um movimento tão forte e revolucionário quanto pouco duradouro no seu tempo, já que nas décadas seguintes nunca deixou de ser lembrado), gravando depois ainda vários discos, como João, Voz & Violão, editado no início do ano 2000 com produção de Caetano Veloso, que viria a dar-lhe um segundo Grammy, como o melhor disco na categoria de world music. O primeiro, recebeu-o em 1964 pelo disco Getz/Gilberto (com ele, o saxofonista norte-americano Stan Getz e Tom Jobim) e atirou-o para um canto da casa. Não lhe deu valor. Não era a sua arte que homenageavam, segundo ele, mas o que dela o mercado retirara.
A bossa nova viveu, pois, bem para além de João Gilberto e do seu espírito visionário, que convivia com um comportamento difícil, sobre o qual se contaram muitas lendas e algumas verdades, nem todas fáceis de entender pelo comum dos mortais. Mas a sua obra perdura como a de alguém que deu à música um olhar novo, um caminho de que só ele soube o segredo.
Não foi pacífico o seu fim: em 2018, em pleno 60.º aniversário do movimento bossa nova, João Gilberto, foi obrigado a deixar o seu apartamento de sempre no Leblon, no Rio de Janeiro, por ter pagamentos em atraso nas rendas. E nos últimos anos, aos relatos públicos do seu crescente isolamento juntou-se à tentativa da filha, a cantora Bebel Gilberto, de o interditar judicialmente por considerar que não estava capaz de autonomia e gestão das suas finanças. Houve, depois disso, uma pacificação aparente. E houve, ainda, a morte da sua ex-mulher Miúcha, irmã de Chico Buarque, em Dezembro passado, que também o abalou. A morte, agora, deu-lhe o devido estatuto: a eternidade.