Joana Mascarenhas é mãe de uma menina de três anos e aos seus seguidores conta, numa story de Instagram, como resolveu as "manhas" da sua filha. A menina chorava, chegou a ter pesadelos nocturnos, relata, mas tudo se resolveu com mergulhos na piscina ou com uma chuveirada, na banheira, a meio da noite, sempre com água fria, de farda ou de pijama vestido. A situação indignou as redes sociais, com pessoas a classificarem estas acções como maus tratos. Os psicólogos Eduardo Sá e Vera Ramalho acreditam que não é assim que se resolve uma birra e propõem outras alternativas. Joana Garcia da Fonseca, psicóloga clínica e terapeuta familiar, classifica o que viu de maus tratos.
A influencer, que na sua conta de Instagram, onde tem 7309 seguidores — diz ser "desperate housewife", uma dona de casa desesperada, e que tanto mostra o seu closet como as actividades que faz com a sua filha, na cozinha —, revela nesta story (trata-se de publicações que ficam 24 horas disponíveis), que chegou ao Twitter através da conta Pide Fiction, que a filha tinha pesadelos nocturnos, um trauma que será por a mãe ir a um curso e a menina ficar com outras pessoas. Entretanto, na manhã deste sábado, a conta de Joana Mascarenhas desapareceu do Instagram, mas continua activa no Facebook.
A criança chorava de noite e dizia "eu estou sozinha, não quero ficar sozinha", relata a mãe. Joana Mascarenhas explica que, em sua casa, a regra é que a menina pode ir para a cama dos pais — "desde que não nos acorde", salvaguarda. Depois de visionar a história, a primeira reacção da psicóloga Vera Ramalho é de preocupação com a criança: "A menina reclama a ausência da mãe." E, por isso, a especialista propõe que se lhe dê atenção. "A relação emocional com a criança deve ser promovida, de modo que não sinta tanta necessidade de fazer birra", diz a especialista, que escreve regularmente no PÚBLICO, acrescentando que, aos três anos, é expectável que as crianças façam birras.
"Uma birra é uma manifestação de raiva e não é nada de trágico", declara Eduardo Sá. Uma birra é também um "medir de forças", continua o professor e Joana Mascarenhas mostra isso mesmo no vídeo, quando diz a menina, de noite, ao chorar, exigia que a mãe dormisse com ela ou que a fosse buscar junto à porta do quarto dos pais — "pega-me ao colo, leva-me", ao que a influencer comenta com os seus seguidores: "Estou a criar uma rainha? Nós não temos aristocracia em Portugal, temos de cortar o limite (sic)." Provavelmente, querendo dizer que se deve "cortar o mal pela raiz", queixando-se que a criança chorava várias vezes durante a noite.
"Quem ganhou?"
Eduardo Sá reconhece que os filhos podem medir forças com os pais, mas que cabe a estes impor os limites, caso contrário, "a criança foge para a frente", ou seja, continua a testar até onde pode ir. "Os pais têm de tomar uma atitude", mas esta não é submergir uma criança vestida em água fria, diz.
Joana Mascarenhas conta que a primeira vez que o fez foi na piscina. A menina chorou cerca de um quarto de hora e ia rastejando até a mãe a ver, esta estava numa espreguiçadeira. "Dei-lhe duas opções (para mim, não lhe disse), das duas uma, vai-se fartar de chorar e perceber que não resolve nada; ou vou-me cansar e ela vai à piscina, vai ao banho." A criança "ainda estava com a roupa da farda" vestida.
"Eu não disse nada. Peguei nela, submergi-a na piscina, até aqui [mostra o nível do pescoço], aquilo desconcentrou-a. O cérebro foi para outra coisa, estava com frio. Ao tirar o foco da birra, que ela estava a tentar ganhar — ora com quem, com uma taurina —, ela percebeu que 'caramba, se calhar a partir de agora, vou perder sempre'. Ela não faz uma birra na piscina há mais de dez semanas", garante a mãe.
"Não é razoável mergulhar uma criança. É não ter noção dos riscos e das consequências", reage Eduardo Sá. Ana e Isabel Stilwell, autoras da coluna Birras de Mãe do PÚBLICO e que, actualmente estão a fazer o podcast Birras de Verão, lembram que cabe aos pais “proteger os filhos, até da sua própria raiva". Afinal, são eles os adultos. "Quando os pais respondem a uma birra com outra birra, imaginando que o que está em causa é uma luta de poder, não só perdem a oportunidade de dar um exemplo de regulação emocional como degradam a relação", dizem.
"A situação exposta publicamente por esta mãe, constitui claramente uma forma de mau trato físico e psicológico, sendo legítima à intervenção da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens territorialmente competente (área de residência da criança) para análise do caso", responde a psicóloga Joana Garcia da Fonseca, na manhã deste sábado.
Joana Mascarenhas repetiu o mesmo comportamento, mais recentemente, numa noite em que a menina voltou a chorar. "'Ai é?' Peguei nela, de pijama, fui para dentro da banheira, molhei-a toda com água fria. Foi um super remédio santo. Ela levou com o banho de água fria, tiramos-lhe a roupa, ficou só de fralda, embrulhei-a na toalha, deitou-se na cama e dormiu três horas... Maravilhoso", suspira a mãe, referindo que na noite seguinte, a menina dormiu até de manhã. "Portanto, ela relaxou, percebeu que não é só na piscina que não pode fazer birras porque vai ser molhada com água fria. Vai perder. Agora também percebeu que em casa pode perder. Ninguém tem de levar com os gritos de uma criança que está só a medir pilinhas, sendo que ela não tem, nem eu. Ela hoje dormiu tranquilamente", declara, satisfeita, terminando com um "quem ganhou?".
Se a mãe está convencida que foi ela que venceu, os especialistas não têm a mesma certeza. "A criança vai deixar de ter esse comportamento porque vai ter terror da mãe", analisa Eduardo Sá. "Ainda que o comportamento possa parecer 'melhorar' — o terror cala qualquer um! —, os fins não podem justificar os meios", avaliam Ana e Isabel Stilwell. "É por demais evidente que a criança inibiu os seus impulsos e manifestações de desejo de proteção, por medo/ terror provocado pela sua mãe", declara Joana Garcia da Fonseca.
"Mães de manual"
Como se resolve uma birra? Uma das recomendações de Vera Ramalho é que se brinque com os filhos. "Quando esses tempos de brincadeira estiverem sedimentados, as birras reduzem bastante", diz, admitindo que as birras podem "esgotar os pais" e levá-los a ter comportamentos dos quais se possam vir a "arrepender-se, como gritar, ameaçar a criança ou até usar alguma punição física".
O que fazer para evitar chegar ao limite? A psicóloga responde que se pode "planear como agir para lidar com a birra e manter a consistência em situações semelhantes". Outra forma é "ignorar a birra até a criança acalmar, ou seja, não lhe dar atenção, mas sempre acautelando que está num local livre de perigo". Eduardo Sá diz que é preciso os pais terem uma "voz firme" e, tal como nos filmes há a técnica do "grande plano", esta também pode ser usada através do olhar, "fazer um grande plano com os olhos, de modo a que a criança tenha medo daquele olhar". Também se pode dizer: "Se tiver de me zangar, zango-me porque gosto de ti", recomenda.
A relação emocional com a criança deve ser promovida de modo a que a criança não sinta necessidade de fazer birra, reforça Vera Ramalho. O PÚBLICO contactou Joana Mascarenhas através do Instagram, mas não obteve qualquer comentário. Entretanto, a sua conta foi apagada.
Autor de vários livros para pais, Eduardo Sá insurge-se com as "mães de manual", pessoas que não têm formação para falar sobre educação ou saúde mental e, mesmo assim, fazem-no publicamente, podendo prejudicar quem as vê ou ouve. "Não há pedagogia alguma nestes actos. Antes pelo contrário, é deturpada a forma como contextualiza e explica as metodologias utilizadas para 'corrigir' as birras da filha", reforça Joana Garcia da Fonseca.
"Esta mãe precisa de ajuda também!", acrescenta a especialista, lembrando que sendo influencer tem uma "enorme responsabilidade" sobre os conteúdos que publica". Vera Ramalho lamenta que muitos influenciadores não tenham noção do impacto que podem ter. "Estas situações deixam-me preocupada com as crianças, até porque são modelos de relação desadequados que se mostram ao mundo sem qualquer crivo", afirma. "Nessa perspectiva, são perigosos os impactos sobre o exercício da parentalidade de outros cuidadores", continua Joana Garcia da Fonseca, defendendo que a actividade dos influenciadores deve ser regulada. Ana e Isabel Stilwell concluem: "Decididamente as redes sociais não são o lugar para expor as vulnerabilidades dos nossos filhos.”
Notícia actualizada dia 15/07/2023, às 11h49: foram acrescentadas as declarações da psicóloga clínica e terapeuta familiar Joana Garcia da Fonseca e a informação de que a conta de Instagram de Joana Mascarenhas foi apagada.