“Manuel Pizarro não tem a força política que se esperava para se impor”

Adalberto Campos Fernandes, ex-ministro da Saúde, critica declarações de Pedro Adão Silva e considera insustentável que direcção executiva do SNS esteja a trabalhar sem estatutos há oito meses.

Campos Fernandes: "As maiorias absolutas têm um risco: o excesso de confiança" Helena Pereira, Susana Madureira Martins (Renascença)
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Foi ministro da Saúde de António Costa, mas não esconde algumas críticas ao actual executivo: desde “​o excesso de confiança”​ por causa da maioria absoluta à perda de gravitas de alguns ministros, como Pedro Adão e Silva. Sobre o sector que tutelou, lamenta, em entrevista ao PÚBLICO-Renascença, a falta de peso político que diz ter sido revelada por Manuel Pizarro e alerta para que a direcção executiva do Serviço Nacional de Saúde está a actuar num limbo há oito meses, sem que estejam ainda aprovados os seus estatutos. Pode ouvir na íntegra esta entrevista na Renascença às 23h.

Quando Manuel Pizarro foi escolhido para ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes aplaudiu a escolha e disse acreditar que Pizarro iria recuperar o tempo perdido. Dez meses depois, Manuel Pizarro está a corresponder àquelas que foram as suas expectativas?
Diria que está a ter mais dificuldades do que aquilo que muitos de nós julgariam que viria a acontecer. Ou seja, Manuel Pizarro, homem experiente, é médico e tem sobretudo a favor dele a circunstância de ser um actor político com enorme experiência. A vida dele tem sido praticamente o exercício de funções políticas. Admito que, de facto, ele próprio deve ser o primeiro a reconhecer que as coisas não estão a ser tão fáceis e tão bem conseguidas como inicialmente se podia esperar. Esta equipa apanha um SNS desfeito do ponto de vista da exaustão dos profissionais, daquilo que foram as consequências da pandemia, temos um quadro de recursos humanos envelhecido, exausto e muito disputado pelo sector privado. Não foi ainda possível a esta maioria estabelecer um pacto de médio prazo com os profissionais para que eles possam reconstruir um pouco o seu projecto dentro do SNS.

Afirmou numa recente entrevista que os nossos melhores amigos são aqueles que nos apontam as nossas falhas e as coisas que fazemos mal. O que é que Fernando Araújo, que foi seu secretário de Estado, está a fazer bem e está a fazer mal como director executivo do SNS?
Ele está numa luta de enorme complexidade. Eu tenho criticado a inexistência de um estatuto do enquadramento da direcção executiva. Já lá vão quase oito meses, é incompreensível. Não há razão nenhuma que possa explicar, mesmo a burocracia administrativa ou endogamia burocrática dos governos, que um órgão tão importante que precisa de tomar decisões e precisa de se afirmar perante o próprio estudo do SNS não tenha estatutos. Sinto que ele está, no fundo, a remar com remos de madeira um grande petroleiro. E isso tem um risco. É que os remos podem-se partir ou o cansaço pode sobrevir. Para ser justo com ele e com a sua equipa, digo que o que ele está a fazer de pior é aceitar esta situação que, no meu ponto de vista, é absolutamente inaceitável.

Qual é a opção?
O Governo tem de resolver esta questão. Alguma coisa se está a passar na relação entre ministérios. A procrastinação deste processo é incompreensível e está a colocar a direcção executiva, não à margem da lei, mas nos limites da legalidade ou a iludir a sua legitimidade institucional. Afinal, Manuel Pizarro não tem a força política que se esperava para se impor. Não sei se será isso. Manuel Pizarro devia ser um pouco mais insistente junto dos colegas do Governo para que o estatuto saia.

Não é difícil de imaginar que este Verão venha a ser tão duro nas urgências hospitalares como foi no Verão passado com a obstetrícia, por exemplo. A pergunta começa a ser: em que hospital é que não se demite uma direcção de serviços?
Bom, na esmagadora maioria. Há demissões nalguns que são emblemáticos e que são de grande dimensão e que projectam portanto no país uma ideia de instabilidade. Eu não sou adepto da teoria de que os problemas se resolvem disfarçando-os ou fazendo de conta que não existem ou criando manobras de diversão. Os problemas existem e devem ser verbalizados com franqueza, com naturalidade, perante a opinião pública e perante o Parlamento.

De que manobras de diversão está a falar?
A política é muitas vezes fértil nesses tipos de situações, de criar factos ao lado, os chamados fait divers para desviar as atenções. A população médica em Portugal acompanhou a demografia do país. Os médicos estão a envelhecer. Há uma fortíssima competição no sector privado. É preciso olhar para o lado das necessidades do sistema. A população mudou. É preciso também ver que a combinação entre público e privado é hoje uma realidade totalmente diferente do que era há 20 anos. Portanto, olhar para o sistema numa lógica de flexibilidade e de adaptação e sem uma rigidez dogmática e quase fundamentalista.

Viu com bons olhos a decisão de recorrer aos privados, no caso do fecho do bloco de partos nas urgências durante o Verão?
Nós todos aqui neste estúdio pagamos impostos. Não temos nenhuma culpa das disfunções, dos problemas, das crises de gestão e de organização. Temos direito de aceder a cuidados de saúde em tempo e em qualidade. Ao Estado cumpre dar respostas. Se as puder dar sempre no melhor tempo e na melhor qualidade no SNS, os portugueses desejam isso. Mas se, por qualquer razão, o hospital da minha zona falha, eu não tenho médico de família no concelho onde vivo, eu não posso ficar sequestrado por guerras ideológicas. O Estado tem obrigação de me dar uma resposta porque eu cumpro as minhas obrigações fiscais.

A médio prazo, isso não conduzirá de forma irreversível à degradação do SNS?
Temos de encontrar uma solução equilibrada. Nós não temos de sacrificar as pessoas por causa da ideia que metemos na cabeça de que o privado não pode ter sucesso e que o privado é mau e que se dermos mais doentes ao privado damos cabo dos serviços de saúde.

A direcção do Serviço de Obstetrícia do Hospital de Santa Maria foi afastada, o director clínico do Hospital São José foi exonerado também. Há aqui uma espécie de purga?
Não. É preciso não conhecer as pessoas que estão em causa. As razões são diferentes. No caso do Lisboa Central, é uma questão de relacionamento pessoal. No caso de Santa Maria, é diferente. Não parece normal que um director de serviço fomente abaixo-assinados contra o Governo e contra o conselho de administração, que seja um agitador, que seja alguém que, entrando em diferença de opinião com o órgão da tutela, não tenha a delicadeza institucional e a sobriedade de dizer: “Eu não estou de acordo, vou-me embora.”

Há duas semanas, o Governo nomeou um adjunto do gabinete de António Costa para presidente do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes. Isso é normal?
Eu ainda sou do tempo da criação da CRESAP [Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública], que foi uma boa ideia. Criou um quadro de apreciação externa independente das próprias tutelas políticas, para não criar nenhum tipo de embaraço a quem é nomeado ou quem nomeia. O facto de uma pessoa ter sido adjunto ou membro de um governo não é necessariamente cadastro. Se a CRESAP fizer o seu papel, for isenta e discriminativa, tudo é explicitado e publicitado sobre o critério.

No Hospital de Beatriz Ângelo, em Loures, também tem havido problemas. O presidente da câmara, Ricardo Leão, do PS, disse estar desiludido com a falha no compromisso por parte do ministro da Saúde. O próprio partido está a descolar do Governo?
Não tenho esta ideia de que os governos são uma espécie de clubes de opinião ou de grupos fechados, relativamente aos quais qualquer crítica que venha do próprio partido é algo muito negativo e assombroso. Relativamente a Loures, a única coisa que tenho a dizer é que foi um erro ter acabado com a PPP [parceria público-privada].

Há uma lei de descriminalização das drogas neste momento a ser discutida. Como é que vê este diploma?
Vejo com preocupação e recomendaria ao Governo e ao Parlamento que ouvissem a maior autoridade sobre a matéria, que é João Goulão. Nós estamos num tempo em que há uma espécie de impulso para a modernidade das causas sem reflectir sobre aquilo que são essas mesmas causas e as consequências que possam ter. Vale a pena ter alguma prudência e não dar passos maiores do que a perna.

O primeiro-ministro desvalorizou a demissão há poucos dias do secretário de Estado da Defesa, constituído arguido num caso da alegada corrupção, dizendo que não é isso que preocupa neste momento as pessoas. António Costa está desligado da realidade?
Não sei. Mesmo no PS há visões diferentes sobre como é que deve ser conduzido o processo político em Portugal e como é que as instituições devem ser governadas. Há uns que dizem que o povo apenas se interessa por questões muito concretas: o rendimento, o emprego, a inflação, a educação, a saúde. Isso é um argumento que pode ser perigoso porque nos leva a supor que os fins justificam os meios e que a forma não tem nenhuma importância em política. Ou seja, não importa o que eu faço, como faço, desde que eu dê alguma coisa no final, em termos de resultados.

Eu não acompanho esse tipo de abordagem. As instituições têm de ser prestigiadas. A democracia é algo muito sério para ser aligeirado. Os checks and balances devem funcionar. Nós devemos ter instituições que se controlam mutuamente e que não se desvalorizem mutuamente. É bom ter um Presidente da República distante, por vezes austero e até crítico. Nós não sabemos verdadeiramente o que é que interessa aos portugueses. Eu não sei. Presumo que querem ter uma vida melhor.

Acha então que houve uma certa arrogância da parte do primeiro-ministro ao reagir daquela forma?Acho que as maiorias absolutas todas, mesmo as do meu partido, têm um risco, sobretudo quando a oposição é fraca: o excesso de confiança, não quero chamar-lhe arrogância. É aquela coisa do “é assim porquê? Porque eu quero”, “é assim porquê? Porque eu acho”. Vejo com muita preocupação que o principal aspecto que sinalizamos no quadro político nacional é a emergência da extrema-direita. E vejo a ideia peregrina de criar cordões sanitários, de diabolizar o partido.

Mas então os cidadãos eleitores que votaram ou que dizem nas sondagens que têm intenção de votar [na extrema-direita]? São descartáveis, estão fora da sua própria consciência? Se calhar não, estão desiludidos connosco. Não seria melhor que nós fizéssemos diferente para que eles não se sentissem atraídos por partidos que querem destruir a democracia? Mas não, os partidos do sistema defendem-se dizendo “atenção que vem ali o lobo mau”, mas não cuidam de saber por que razão o lobo mau tem caminho para percorrer. Não estamos a reagir com serenidade, com humildade. Temos de dizer “não, não façam isso, porque nós vamos ao encontro das vossas expectativas.

Se o vosso problema é com a justiça, vamos melhorar a justiça”. Parece que se perderam aqueles pontos de referência essenciais que definem um regime institucional. Por exemplo, as regras que fazem parte de um código democrático republicano, um ministro não deve criticar de uma forma inadequada os deputados.

Está a falar de Pedro Adão Silva.
Com certeza. E um relatório de uma comissão parlamentar de inquérito reporta e relata, não omite. No dia em que se perder os pilares fundamentais de institucionalismo, a democracia destrói-se. Não pode ser um exercício de entretenimento, tem regras.

Por que é que se perdeu essa noção?
Entrou-se num registo político que por vezes me parece excessivamente à vontadinha. Confundir popularidade com populismo nunca deu bom resultado ou abdicar daquilo que são os deveres de recato, de institucionalismo, de regras, de contenção.

Há políticos que estão a fazer mal à própria imagem dos políticos?
Há vários aspectos. Há políticos que têm um desprezo assumido e flagrante pela democracia. Não gostam de democracia e usam as falhas da democracia para tirar disso vantagem. É isso que vemos com o populismo. Mas, se eu tenho deveres institucionais, devo-os exercer com o gravitas da função. Não devemos fazer do exercício político um acto de entretenimento puro, porque entretenimento nós encontramos noutro sítio, não é?

Pedro Nuno Santos é o salvador do partido a prazo ou vai ter de esperar um pouco até lá chegar?
Pedro Santos é um homem com enormes qualidades de liderança política. A política corre-lhe nas veias, ele tem magnetismo, mobiliza. Outra coisa é saber qual é o posicionamento político e o que é que ele pretende fazer para o futuro do Partido Socialista. Isso ainda não sabemos muito bem. É inteligente, bem preparado, mas provavelmente menos social-democrata do que muitos dos sociais-democratas que estão dentro do PS. E uma coisa lhe garanto: em Portugal, sempre que se abandona o centro, perdem-se eleições.

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