No Montenegro de Faro, praia de flamingos e motas
Toma-se a freguesia de Faro por aeroporto e praia, mas a costa revela uma ria Formosa pautada por salinas, flamingos, memórias de atum e aroma a pinheiros. Mas por estes dias Montenegro é das motos.
Talvez a maioria nunca chegue a saber, mas é Montenegro o primeiro chão português que pisam ao aterrar no Algarve. Antes da construção do aeroporto, do campus da universidade e do rendilhado de vivendas, toda esta zona a caminho da praia de Faro, a única no concelho com acesso por via terrestre, seria uma mancha densa de floresta que, avistada da cidade, mais pareceria um monte negro. Ou, pelo menos, é essa a explicação que tradicionalmente se conta sobre a origem do nome dado à freguesia mais recente da capital algarvia, oficialmente criada em 1997.
Alheios a designações, fintamos o miolo urbano desta zona do concelho, separada da cidade pela linha de caminho-de-ferro e por uma franja da ria Formosa que aqui se adentra, insinuando com as suas marés uma dança de águas e lodos onde peixes, moluscos e aves marinhas se alimentam e refugiam. Partimos de bicicleta junto à Marina de Faro, a dois passos do centro histórico, e viemos a pedalar pelas costuras da cidade com a ria.
Quase sempre em terreno plano, ora por zonas de muito pouco trânsito, ora por ciclovia, a bicicleta é talvez a melhor solução para descobrir este pedaço da capital algarvia ou simplesmente chegar à praia encurtando distâncias e trânsito. Com apenas uma faixa de rodagem e semáforos que controlam a circulação para lá e para cá, a ponte de acesso ao areal costuma ficar bastante congestionada na época alta e horas de ponta, mas é possível levar a bicicleta pela mão nos estreitos passeios pedonais. Bónus extra: fácil estacionamento.
Melhor ainda: a oportunidade de conjugar a ida à praia com um passeio pelo parque ribeirinho, zona de sapal e salinas, com direito a observar uma pequena colónia de flamingos, entre caranguejos boca-cava-terra, pernilongos e outros animais. “É uma das seis espécies que existem no planeta, o flamingo-comum (Phoenicopterus roseus)”, aponta José Louçanas, guia da Formosamar, operador turístico local que tem no cardápio um passeio guiado pela zona (dura três horas e custa 50€ por pessoa; sendo também possível alugar a bicicleta e fazê-lo em autonomia).
“De momento, estes são residentes no Algarve, já não migram”, conta o guia, enquanto partilha outras curiosidades sobre a espécie e o grupo de cerca de 25 flamingos pousado à nossa frente, num dos rectângulos das salinas ainda em actividade, indiferente ao vaivém de aviões na pista do aeroporto, a poucos metros de distância. “Isto no Verão é assim, com aviões sempre a aterrar e a descolar.”
Daqui já se avista a linha de casas ao longo da praia de Faro e, à frente, surge destacado o edifício de apoio à antiga armação de atum do Ramalhete, uma das três que outrora existiram na orla costeira de Faro. Até à década de 1970, altura em que a captura de atum caiu tão a pique que acabou com esta arte de pesca no Algarve, dezenas de famílias de pescadores mudavam-se para esta zona durante a época da apanha, vivendo em cabanas na envolvente do Ramalhete.
Hoje em dia, o antigo edifício, entretanto recuperado, acolhe uma estação experimental da Universidade do Algarve, onde é feita, entre outros estudos na área da Biologia Marinha, a reprodução em cativeiro de cavalos-marinhos numa tentativa de recuperar a população de uma espécie que, até há poucos anos, tinha na ria Formosa a maior comunidade do mundo.
Pinhal de motas
Luís Miguel decidiu há três anos que este seria o seu ponto fixo de venda, mesmo antes da ponte para a praia de Faro. Encontramo-lo à sombra de uma lona presa às traseiras da carrinha, onde vende caixas de hortaliças e fruta da época, de melões e melancias a sacas de laranja D. João, a variedade “de Verão” produzida no Algarve, conta. Com a manhã a meio, ainda não tinha vendido nada. “Este ano não tem muito movimento”, lamenta, apontando o aumento do custo de vida e “os salários, tudo igual”. Acredita que há menos gente de férias, menos trânsito. No restaurante Zé Maria, já em plena praia de Faro, o almoço “está a correr bem, com clientes”. Mas “normalmente” é só “a meio de Julho” que a temporada “arranca a sério”, defende Vítor Santos, gerente do restaurante familiar, fundado pelo Zé Maria que dá nome à casa “à volta de 1975/76”.
Apesar de muitos continuarem a chamar-lhe “ilha” de Faro, a estreita língua de terra, com a ria de um lado, o oceano do outro e, ao meio, uma estrada ladeada de casas, entre edifícios modernistas, minúsculas moradias de traça vernacular enterradas na areia, e casas de pescadores, é na verdade parte da península do Ancão, a primeira das sete barreiras arenosas que cortam a força do Atlântico para formar a ria Formosa.
Localizado na “ilha de baixo” (leia-se lado esquerdo quando se vem na ponte), chegamos ao Zé Maria por duas recomendações de habitantes locais (houve também quem tivesse gabado o arroz de lingueirão do Roque, mas abre apenas ao fim-de-semana). Colado à praia, é um lugar despretensioso e de trato áspero, um daqueles milagres que permanece cápsula de um tempo sem conceitos, tendências e modernices. O negócio “tem sido sempre da mesma família”, conta Vítor. E a ementa também pouco terá mudado, uma vez que a receita está escrita no horizonte: marisco da ria e peixe fresco do mar, com algumas opções de carnes grelhadas para os mais carnívoros. Quanto a especialidades, não falta também o arroz de lingueirão (para duas pessoas e só por reserva nesta altura do ano, porque há pouco, e mais vale “ter menos mas com mais qualidade”), com destaque ainda para o bife de atum de cebolada e a barriga de atum grelhada.
A poucos metros de distância, mas virado à ria, fica o centro náutico municipal, onde é possível experimentar uma aula de caiaque ou de stand up paddle a preços já raros: 2€ e 3€ por duas e uma hora de “baptismo”, respectivamente, sendo possível alugar os mesmos equipamentos por 2€/2h para explorar autonomamente os canais da ria.
Por estes dias, no entanto, é a 41.ª Concentração Internacional de Motos que atrai todas as atenções em Montenegro. Foi precisamente aqui, num terreno muito perto da actual localização (a dois passos do aeroporto), que os fundadores do Moto Clube de Faro e alguns amigos promoveram o primeiro encontro, em 1982. Memória do monte negro, esta “ponta verde” que se estende “até à Quinta do Lago”, aliava a “única zona de sombra que Faro tem” com a proximidade da praia, recorda Gaspar Gago, membro da direcção do moto clube.
Naquela altura, o palco “era o atrelado de um tractor” com “uma pessoa a pôr música”. Não havia cartazes, bares, stands. Era um convívio de amigos com paixão pela cultura do motociclismo, de acesso livre, quase como “uma festa da aldeia”, conta. Depois foi “ampliando, ampliando” até se transformar no maior evento da capital algarvia. De 200 participantes, a esmagadora maioria estrangeiros, muitos vindos da base militar de Beja, a concentração chegou “à volta de 30, 35 mil pessoas”. Este ano, com menos uma faixa de terreno, transformada em urbanização, estão “a preparar as coisas para 15 mil inscrições”, cerca de 27 mil pessoas no total, contabilizando organização e convidados.
De 19 a 23 de Julho, é possível que Montenegro assista à última concentração de motos. O terreno integra o Parque Natural da Ria Formosa e o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas decidiu que este seria o último ano em que o moto clube tem autorização para realizar o evento aqui. “Se o parecer não for alterado, esta poderá ser a última concentração porque, infelizmente, não temos muitas alternativas. Faro não tem mais espaços verdes para fazermos as zonas de acampamento”, defende. O futuro do histórico encontro é “uma incógnita muito grande”, mas para já, uma certeza: esta semana, Montenegro ainda será inundado pelo rufar dos motores.
A origem do nome
Toda esta zona a caminho da praia de Faro, a única no concelho com acesso por via terrestre, seria uma mancha densa de floresta que, avistada da cidade, mais pareceria um monte negro. Essa é a explicação que tradicionalmente se conta sobre a origem do nome dado à freguesia mais recente da capital algarvia, oficialmente criada em 1997.