Na nova produção do Teatro Griot, plantada em Moçambique, a guerra é assunto de todos

Numa adaptação do livro homónimo de Paulina Chiziane, o encenador Noé João leva ao Teatro da Politécnica, de 13 a 29 de Julho, o espectáculo Ventos do Apocalipse.

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Co-produção do Teatro Griot com os Artistas Unidos, Ventos do Apocalipse fica em cena até 29 de Julho Sofia Berberan
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Duas mulheres e dois homens estão ajoelhados no chão. Dobram peças de roupa, com gestos lentos. Sobre as suas cabeças soa um infernal ruído de guerra, de tumultos e de ataques que porém não belisca, um pouco que seja, as suas imperturbáveis acções. Na verdade, é uma imagem que se repete. Já a vimos no início de Ventos do Apocalipse, encenação de Noé João a partir do romance homónimo da escritora moçambicana Paulina Chiziane, e agora vemo-la de novo.

Da primeira vez, as mesmas duas mulheres e os mesmos dois homens, ajoelhados no chão, dobrando peças de roupa com gestos lentos — mas imersos num profundo silêncio. A guerra veio depois e, ultrapassado o pânico inicial, o seu ruído constante passou a fazer parte do quotidiano destas quatro figuras. Dobram peças de roupa como quem prepara a fuga iminente; dobram peças de roupa como quem trata dos pertences dos familiares desaparecidos; dobram peças de roupa como quem guarda as memórias das vítimas do conflito.

É uma das cenas mais intensas do espectáculo que Noé João, guionista e colaborador do Teatro Griot, montou a partir do livro da autora laureada com o Prémio Camões em 2021, queda livre literária na guerra entre os povos mananga e macuácua, em particular, e, indo mais fundo, na degradação trazida pela guerra de modo universal. Reduzindo o peso da palavra, mergulhando no silêncio, o encenador construiu a peça a partir de “trechos, momentos, situações” encontrados no romance e transportados para o palco, explica ao PÚBLICO.

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“A linha principal do texto é a guerra em Moçambique, com um povo que foge da sua aldeia, de uma terra para outra, à procura de melhores condições, à procura da paz e da tranquilidade”, diz. Mas Noé João quis que essa busca incessante, que leva mulheres e homens a questionarem-se onde está a sua casa e o seu lugar de abrigo, não se reduzisse a uma “guerra de tiros e armas é também guerra a falta de habitação, a falta de um lugar seguro, a falta de trabalho”, defende. E aquilo a que se chama casa não é forçosamente um lugar físico. “É também o imaginário, o lugar de agregação; a minha casa é à volta dos meus amigos, de quem me quer bem”, concretiza o encenador.

A busca por um lugar a que possam chamar casa surge tanto nos primeiros quanto nos últimos minutos desta co-produção do Teatro Griot com os Artistas Unidos que estará em cena no Teatro da Politécnica, em Lisboa, de 13 a 29 de Julho. Mas se essa busca começa por soar a espanto e medo quando as personagens perguntam “onde está a nossa casa?”, destruída até às suas fundações, obrigada a ficar para trás ou expulsa das memórias, mais tarde a interrogação há-de ressurgir num tom de revolta e de frustração, como uma terra prometida que, a cada passo, se afasta um pouco mais.

Se há muito de simbólico e poético neste Ventos do Apocalipse, em que Noé João se aproxima também daquela que é a linguagem habitual do Teatro Griot, foi da guerra num sentido mais literal que o encenador partiu quando, ao debruçar-se sobre a obra da contadora de histórias moçambicana que prefere esta designação à de romancista —, se valeu dos relatos de guerra que escutou ao crescer em Angola. É essa memória da guerra que habita os quatro intérpretes (Ana Paula Monteiro, Daniel Martinho, Huba Mateus e Rolaisa Embaló), enquanto “corpos que pairam pela cidade, corpos que ficam pelo chão”, desorientados e perdidos. É essa memória que habita as suas vozes, transformadas num grito desesperado e sofrido, em uníssono, nos instantes em que se juntam no “quadro das carpideiras”. “Um momento criado para transmitir a sensação da dor daqueles que perdem os seus entes queridos porque na guerra há os corpos que fogem, os que pairam pela cidade, os que ficam largados no chão e aqueles que velam esses corpos.”

Nas palavras de Chiziane que furam o silêncio, ouvimos a que culpa é colectiva mas que nem por isso estimula a acção. Ao público, é proposto que se posicione. A guerra, embora possa parecer que acontece apenas do lado de lá, implica-nos a todos. E Ventos do Apocalipse, nesta versão de Noé João, veste-se sobretudo dessa postura. Não vale fingir que não se vê. Não vale fingir que se está de fora só porque as balas correm na direcção de outros peitos.

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