Quando o legislador e a ciência andam desencontrados: o caso da audição da criança

Ao legislar-se que o psicólogo forense pode realizar a inquirição, estar-se-ia a disponibilizar um recurso de optimização das decisões judiciais e do bem-estar das crianças.

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Os instrumentos legais, portugueses e internacionais, reconhecem que todas as crianças têm o direito de exprimir livremente as suas opiniões sobre assuntos que lhes dizem respeito e o direito de participar em processos decisionais onde as suas opiniões devem ser tidas em consideração. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança define "criança" como todo o ser humano com menos de 18 anos e o direito de audição e participação é um dos quatro pilares em que esta se assenta.

Os artigos 4.º e 5.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível são particularmente importantes por apresentarem “um conjunto de regras relativamente à audição e participação da criança, as quais são aplicáveis não apenas aos processos tutelares cíveis, mas também aos processos de promoção e protecção, para além de evidentes reflexos no âmbito da audição de crianças em processo penal e nos demais processos (...)”.

O artigo 5.º – audição da criança estabelece que a criança deve ser “assistida no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito” e “a inquirição é feita pelo juiz, podendo o Ministério Público e os advogados formular perguntas adicionais”.

Quando uma criança é alegadamente vítima de maltrato sexual, é obrigatório diligenciar um procedimento intitulado Declarações para Memória Futura, que intenciona recolher o seu testemunho e evitar a necessidade da sua inquirição em fase de julgamento. Nas DMF, mantém-se o acompanhamento por técnico especialmente habilitado, a inquirição pelo juiz e a formulação de perguntas adicionais por outros intervenientes (artigo 271.º do Código de Processo Penal).

Quem é o “técnico especialmente habilitado” e qual é o seu papel? De acordo com as minhas vivências e registos escritos, quando os juízes determinam a audição da criança em processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais, processos de promoção e protecção de crianças em perigo, e processos-crime em que se diligencia as DMF, os técnicos designados são frequentemente – se não geralmente – psicólogos.

O papel do técnico é apoiar a criança na regulação emocional e prepará-la para o momento da inquirição, podendo este ficar mais claro no mais recente (2022) guia de boas práticas para a audição da criança.

No âmbito da inquirição, é fundamental destacar o protocolo de entrevista investigativa do National Institute of Child Health and Human Development, que objectiva a recolha de informação relevante do ponto de vista forense junto de testemunhas especialmente vulneráveis. Este protocolo é identificado na literatura como o exemplo máximo da ciência aplicada ao domínio da entrevista com crianças e adolescentes, o que se deve ao facto de a sua elaboração reflectir uma série de estudos científicos produzidos ao longo de 30 anos (considerando a sua versão revista, lançada em 2018).

Entre estes encontram-se os que investigaram os resultados da sua utilização, que evidenciam ganhos significativos na quantidade e qualidade da informação obtida, e os que demonstram as consequências adversas de entrevistas sem sustentação científica. Visto que o psicólogo forense tem formação e, idealmente, treino em questões pertinentes para as decisões judiciais – importante em entrevista investigativa e clínica com crianças e adolescentes – não faria sentido legislar sobre a possibilidade de ser este “técnico especialmente habilitado” a realizar a inquirição?

Na prática, há juízes a nomear psicólogos forenses para a realização de, pelo menos, uma 1ª inquirição. Por exemplo, na comarca de Aveiro, as DMF são realizadas por psicólogo e acompanhadas em tempo real pelo juiz, Ministério Público e advogados presentes numa sala adjacente.

O seguinte texto de uma Sr.ª Procuradora da República elucida o que poderá ser a fundamentação jurídica destas decisões: “Resta questionar se a interpretação literal da norma que consagra que a inquirição é feita pelo juiz se coaduna, ainda, com o entendimento de que pode ser o técnico especialmente habilitado para acompanhar o menor a proceder à sua audição, formulando ele as perguntas. Se perspectivarmos o psicólogo como um “intérprete” que fala a mesma língua do menor, à semelhança daquele que é nomeado às testemunhas que não conhecem a língua portuguesa ou que recorrem à linguagem gestual, um tal entendimento parece já não colidir com o teor da norma aludida”.

Ao legislar-se que o psicólogo forense pode realizar a inquirição se o juiz assim decidir, estar-se-ia a disponibilizar formalmente um recurso de optimização das decisões judiciais e do bem-estar das crianças, no contacto com o Tribunal e a longo prazo.

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