Falta falar de Direitos da Criança na revisão constitucional
Propõe-se que seja aditado ao artigo 69.º da Constituição um número que consagre o direito de participação e audição das crianças, à semelhança do que acontece com noutros países da União Europeia.
Dezoito anos após a Lei Constitucional n.º 1/2005, Portugal encontra-se, de novo, num processo de revisão constitucional. Se todos os oito projetos de revisão apresentados pelos vários partidos com assento parlamentar merecessem aprovação, a Constituição veria mais de metade do seu texto revisto.
As revisões constitucionais, como qualquer alteração legislativa, são sempre fruto do tempo em que despontam. Nesse sentido, seria desejável que se aproveitasse esta revisão para introduzir, na Constituição, uma visão atualizada da conceção de criança e dos seus direitos.
De facto, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CDC), de 1989, veio contribuir de forma decisiva para uma mudança no modo como se olha e interage com a criança e a infância, ao colocar, a par de uma visão da criança enquanto ser carecido de proteção e da atividade prestativa da família, da comunidade e do Estado, uma outra visão de criança titular de direitos, os quais deve poder exercer pessoalmente de acordo com a sua idade, maturidade e discernimento.
Esta nova conceção, mais respeitadora do “ser-se criança”, foi sendo acolhida pelo ordenamento jurídico português, desde logo através da ratificação dos principais instrumentos jurídicos de promoção e proteção dos direitos da criança que constituem, desde há muito, uma prioridade da política nacional, inspirada nos planos internacional e regional, e igualmente, por via dos instrumentos normativos da União Europeia.
Desde logo, ao ratificar em 1990 a Convenção sobre os Direitos da Criança e os seus três Protocolos, Portugal assumiu o compromisso histórico de promover os direitos de todas as crianças e de respeitar, proteger e garantir estes direitos através da adoção de legislação e de políticas nacionais. O que vem fazendo ao nível infraconstitucional desde 1999, com a aprovação da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, já com quatro revisões e da Lei Tutelar Educativa (LTE), aprovada pela Lei n.º 166/1999, de 14 de Setembro e alterada pela Lei n.º 4/2015, de 15 de Janeiro.
Este processo de adaptação às exigências de dignidade da criança mereceu um impulso significativo através do pacote legislativo da Infância, de 2015, que veio sedimentar, em diversos diplomas, a mudança de paradigma que se vinha desenhando e que reconhecia à criança o seu estatuto de sujeito de direitos.
Destacam-se, deste significativo quadro legal, não apenas a alteração à LPCJP e à LTE, mas, igualmente, a aprovação do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), pela Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro e do Regime Jurídico do Processo de Adoção, pela Lei n.º 143/2015, de 8 de setembro.
Convém não esquecer, no entanto, que, através da revisão de 1977, Portugal consagrou no Código Civil uma norma não apenas inovadora, mas à frente do seu tempo, segundo a qual, a par do deveres dos filhos para com os pais, estes, de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em consideração a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida (artigo 1878.º, n.º 2), anotando-se que outros diplomas vinham aflorando a relevância da vontade da criança na tomada de decisões, nomeadamente no âmbito do direito da medicina.
Observa-se, assim, que o Direito das Crianças tem vindo a adotar as orientações internacionais em matéria dos direitos da criança, em geral, e do direito de participação e audição, em particular, consagrando este direito nalguma legislação nacional, designadamente em matéria de adoção, no âmbito dos processos tutelares cíveis e dos processos de promoção e proteção, nos quais se reconhece às crianças o direito a serem ouvidas, a expressar livremente as suas opiniões, determinando que estas sejam tidas em consideração, não se submetendo nem a audição nem a consideração das opiniões da criança a um limite de idade rígido, garantindo-se antes a audição de toda e qualquer criança sobre as decisões que lhe digam respeito, atenta a sua capacidade de compreensão dos assuntos em questão.
No entanto, a nossa Lei Fundamental não acompanhou, nem reflete, esta mudança de paradigma. Pelo contrário, verifica-se que o direito das crianças se mantém, nesta sede, associado apenas à ideia de proteção/prestação conforme consagrado no seu artigo 69.º (Infância), garantindo às "crianças o direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na Família e nas demais instituições". Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, é um típico “direito social”, que envolve deveres de legislação e de ação administrativa para a sua realização e concretização.
Isto é, a concretização do melhor interesse – sempre superior – da criança não se resume àquela sua condição de ser carente de intervenção protetiva, exigindo-se, agora, que lhe seja assegurado o seu direito à participação, nos vários contextos de vida em que se encontre envolvida, seja na escola, na vida comunitária, ou nos assuntos judiciais e administrativos que lhes digam respeito.
Nesta medida, e estando um processo de revisão constitucional em curso, propõe-se que seja aditado ao artigo 69.º da Constituição da República Portuguesa um número que consagre o direito de participação e audição das crianças, à semelhança do que acontece com outros países da União Europeia como a Irlanda, a Polónia ou a Áustria.
Trata-se de reconhecer a cada criança, independentemente da sua idade ou características individuais, a oportunidade de ser ouvida e de ver as suas opiniões tidas em conta, como previsto no artigo 12.º da CDC.
Considera-se que será uma oportunidade perdida, no atual momento de revisão constitucional, se os deputados que também representam, necessariamente, os interesses das crianças, não consagrarem na Lei Fundamental a referida mudança de paradigma, passando a reconhecer-se à criança um estatuto de sujeito de direitos ativos que devem ser-lhe assegurados e exercidos em nome próprio sem nenhum tipo de discriminação, de acordo com a sua idade e maturidade, prosseguindo-se o seu superior interesse e valorizando a sua participação nas decisões que lhe dizem respeito.
É nesse sentido que se pretende sensibilizar a comunidade, bem como todos os grupos parlamentares, na expectativa que possa vir a considerar-se a alteração destas normas, porque as crianças reclamam, de forma indiscutível, essa mudança!
São elas autoras do seu próprio destino e, como tal, a nossa lei fundamental deve ser a primeira página dessa nova ideia que tem de correr mundo.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico