É preciso valorizar o trabalho hospitalar

Desde 1985 surgiram sete novos hospitais com serviços de Pediatria na região de Lisboa (três privados) perfazendo um total de 12 num raio de 30 Km. Este número é necessário? E desejável? Não e não.

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Portugal teve durante muitos anos uma percentagem significativa dos melhores alunos do ensino secundário a escolher Medicina e, por seu turno, a formação médica, geral e específica, é reconhecidamente de boa qualidade.

Também a criação da licenciatura em Enfermagem e a progressiva diferenciação destes profissionais tem constituído uma mais-valia substancial para as equipas de saúde.

E o mesmo se passa com os técnicos superiores de saúde, de meios auxiliares de diagnóstico e terapêutica, cada vez mais capacitados nas suas áreas específicas.

O capital humano investido na saúde em Portugal tem um potencial imenso. O que tem estado claramente em défice, desde há décadas, é a gestão política da saúde - dos seus recursos, humanos e logísticos.

Vejamos o exemplo da Pediatria. A média anual de nascimentos em Portugal nos meus primeiros dez anos de trabalho médico (1985-1994) foi de 119.165, comparando-se com 84.532 nos últimos dez anos (2013-2022) – uma redução de 29% (Fonte: Pordata).

Mas desde 1985 surgiram sete novos hospitais com serviços de Pediatria na região de Lisboa (Belém, Almada, Amadora, Loures e três privados) perfazendo um total de 12 num raio de 30 Km de Lisboa. Este número é necessário? Não. É desejável? Também não.

Em medicina não é possível obter excelência de resultados sem experiência, isto é, sem um número significativo de doentes – e a médio prazo tal irá refletir-se obrigatoriamente na qualidade da assistência. Além disso, a dispersão de internamentos pediátricos por 12 hospitais tem custos financeiros acrescidos, pela necessidade de manter equipas que prestem assistência 24/24h em 12 locais diferentes. Há que recuperar vagas dos serviços de pediatria de hospitais centrais, que foram reduzidas sem um correto planeamento.

É verdade que as urgências pediátricas de todos estes hospitais têm um movimento significativo – mas a larga maioria podia e devia ser atendida nos cuidados de saúde primários.

Porque não existe serviço de urgência aberto todos os dias (incluindo fins de semana e feriados), pelo menos até às 24h, em cada Agrupamento de Centros de Saúde? E porque não estão estes equipados com exames complementares simples de resposta imediata (como radiografia do tórax, testes rápidos microbiológicos, de urina, glicemia, gasimetria, valor de hemoglobina e proteína-C-reativa)?

Aos hospitais cabem as consultas de especialidades, tratamentos em Hospital de Dia, meios complementares de diagnóstico e terapêutica, cirurgias, cuidados intensivos, intermédios, urgência, observação e enfermaria. Ou seja, cabe o acompanhamento do doente moderado a grave, agudo ou crónico. Mas não devia caber o atendimento de milhares de doentes agudos ligeiros e por isso serem obrigados a 18h de urgência incluídos no seu trabalho semanal.

Os médicos hospitalares cumprem ainda com a formação permanente de internos de formação geral e específica; são solicitados para palestras e cursos e grupos de trabalho múltiplos no âmbito de sociedades científicas e da DGS e para investigação e participação em estudos multicêntricos e participação em júris e peritagens. Tudo sem remuneração adicional e muito em horário pós laboral.

Custa cada vez mais a aceitar a abismal diferença salarial que favorece o trabalho em cuidados de saúde primários versus o hospitalar. Porque não se adota para os profissionais de saúde hospitalares um sistema remuneratório semelhante ao estabelecido para as USF tipo B, onde são atingidos salários mensais três a quatro vezes superiores, sem se obrigar a horas suplementares e com tempo e remuneração dedicada à formação que prestam?

E como aceitar que um tarefeiro sem responsabilidades de chefia, que se recusa a ver os doentes mais complicados, ganhe mais com a prestação de 4 serviços de urgência de 24h por mês do que um chefe de equipa por um mês de trabalho hospitalar que inclui 4 serviços de 18h?

Há muitos anos, ouvi um médico jubilado dizer que Salazar tinha “apostado” em deixar os médicos trabalhar nos hospitais só de manhã, com salários baixos, porque ganhariam dinheiro à tarde nos consultórios. Ainda queremos estar nesse tempo?

Cada vez mais dos nossos profissionais, bem preparados, vão trabalhar para outros países desenvolvidos. E em contrapartida contratam-se 300 médicos cubanos, dispensando o devido reconhecimento de capacidade técnica pela Ordem dos Médicos? Não se está a cuidar bem da saúde dos portugueses.

É alarmante a falta de expetativa positiva dos profissionais de saúde nos hospitais do SNS em relação à criação de condições de trabalho ótimas e a remuneração justa. Estou convencido que tal pode ser invertido sem custos adicionais para o estado português, com a centralização de alguns serviços e urgências, a modernização e rentabilização de equipamentos e o incentivo das equipas, obrigatoriamente também em termos salariais.

Não devo ser o único que está farto de ideologias e comissões espúrias que se esgotam em si próprias. Precisamos dum sistema de saúde que funcione de forma integrada. Haja vontade, boa gestão e força para vencer a resistência inicial e seguir num bom caminho.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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