Choque no aumento da pobreza infantil mitigado pelas prestações sociais

O risco de pobreza infantil aumentou na última década, mas apoios sociais permitiram ligeira melhoria nos últimos anos, com dados disponíveis: 20,4% em 2020 e 18,5% em 2021

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Em Portugal, o risco de pobreza infantil subiu, segundo os dados disponíveis em 2020, para 20,4%, perto dos 22,8% de 2007 Daniel Rocha
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Para a investigadora da Escola Nacional de Saúde Pública Joana Alves, que estuda as causas dos problemas na saúde e na economia social, “a desigualdade é muito injusta e nociva, porque acaba por prejudicar todas as classes e determina que fiquemos abaixo da nossa capacidade enquanto sociedade”. Mas são as pessoas com menores rendimentos, ou seja, os pobres, que mais sofrem, por entrarem numa espiral de falta de dinheiro e de acesso às condições essenciais para serem, de facto, cidadãos de pleno direito na educação, na saúde, na habitação, no emprego. Uma das lutas decisivas é contra a pobreza infantil, a base geracional (0 aos 17 anos) do futuro. Em Portugal, o risco de pobreza infantil subiu, segundo os dados disponíveis em 2020, para 20,4%, perto dos 22,8% de 2007. Mas os dados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, feito pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), referentes a 2021, atenuam o choque, reduzindo esse risco para 18,5%, ao nível de 2019, quando a curva da pobreza recomeçou a descer até ao pico de 2020.

De acordo com o relatório Portugal, Balanço Social, elaborado por uma equipa coordenada por Bruno P. Carvalho e Susana Peralta, com o investigador Miguel Fonseca, a linha de pobreza numa família monoparental, com uma criança, é traçada por um rendimento disponível mensal do agregado inferior a 720 euros; para uma família com dois adultos e uma criança, abaixo dos 997 euros; e, para uma família com dois adultos e duas crianças, um rendimento aquém de 1163 euros mensais. Estas guias espelham os agregados em que as crianças correm mais ricos de pobreza e exclusão social, especialmente nas famílias monoparentais e numerosas, mas igualmente nas de minorias como os migrantes, as de etnia cigana ou em que haja crianças com necessidades especiais.

“A desigualdade e as bolsas de pobreza são persistentes ao longo dos anos. E depois há anos contraciclo”, observa Joana Alves. “Não há só a diferença entre mais pobres e mais ricos, existe um gradiente ao nível social. Ou seja, a cada degrau que nós descemos corresponde a perda de anos de vida, o aumento da mortalidade, a diminuição da esperança média de vida e o crescimento da morbilidade com que vivemos, quer em carga da doença, quer na degradação da saúde mental”, analisa. E sublinha alguns factores afectados: comportamentos da mobilidade, o exercício físico, uma melhor nutrição e até o consumo de tabaco e álcool.

E conclui: “Realmente, o que vemos é um gradiente. Não se passa de um extremo para o outro. Tudo contribui, da família ao contexto em que nascemos. Todo este contexto influencia a saúde, as nossas oportunidades para estudar, o acesso às actividades extracurriculares. Umas crianças ficam em casa porque os pais trabalham por turnos, outras podem ir para o Inglês, para a Música, etc. Isto por um lado é extremamente injusto e, por outro, é evitável.”

E é aqui, no que se pode evitar, que entra a Garantia para a Infância, “um instrumento político europeu que visa combater a pobreza infantil e que surge do reconhecimento da necessidade de um instrumento robusto e forte, no pressuposto de que a melhor forma de combater a pobreza é começar pela infantil, para termos uma melhor sociedade”. É assim que a coordenadora nacional Sónia Almeida descreve o Plano de Acção Nacional da Garantia para a Infância, concretizado por recomendação da União Europeia (2021/1004), durante o Conselho de 14 de Junho de 2021, aquando da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia. A 17 de Janeiro de 2023, foi aprovado pelo Conselho de Ministros.

“O plano apresenta um modelo de governação de descentralização acreditando na importância das autarquias e da rede associativa para melhorar diagnósticos dos problemas, porque nem todas as regiões enfrentam a mesma intensidade de problemas”, explica a coordenadora nacional da Garantia para a Infância em Portugal (já há coordenadores nacionais nos 27 países da União Europeia). “Já entrámos em contacto com todas as Comunidades Intermunicipais [há 21, em Portugal] e estamos a trabalhar com mais de 50 municípios”, acrescenta.

Entretanto, foi já constituída uma comissão técnica nacional que integra os ministérios do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, da Saúde, da Educação, da Habitação, da Justiça e dos Assuntos Parlamentares –​ neste caso, sobretudo por causa da área das migrações. “Foi constituída, precisamente, por a questão da pobreza ser multidimensional”, comenta Sónia Almeida.

Consciente de que a luta contra a pobreza infantil “é uma corrida de fundo, que vai demorar”, a coordenadora da Garantia para a Infância assume que o resultado do “período anterior de combate à pobreza foi claramente superado”. Isto se tivermos em conta a meta para 2030, de redução da pobreza na União Europeia em 15 milhões de pessoas, sendo que um terço serão crianças. Para já, pode divulgar-se uma redução, em Portugal, de 41 mil crianças do limiar do risco de pobreza e exclusão social, entre 2019 (eram 380 mil) e 2021 (339 mil).

No entanto, a meta de Portugal através da Garantia para a Infância é retirar 50% das crianças desse limiar – na altura em que foram estabelecidas as metas europeias e nacionais, significava que Portugal teria de resgatar cerca de 161 mil crianças da pobreza. “Temos de encarar a meta como um compromisso de que quanto mais melhor; e de que a superação da meta é o objectivo”, anota Sónia Almeida.

Sublinhando que “o regresso à tendência decrescente é uma boa notícia”, referindo-se à diminuição do risco de pobreza dos menores de 18 anos de 1,9% entre os dados de 2020 e os de 2021, a coordenadora lembra que a medida da Garantia para a Infância foi implementada no primeiro semestre de 2022 e que, “por essa razão, os efeitos ainda não estão reflectidos nas estatísticas”, o que só deverá acontecer quando a Garantia para a Infância apresentar à União Europeia o primeiro dos relatórios intercalares, algures no primeiro quadrimestre de 2024 (serão apresentados de dois em dois anos e a informação publicamente disponibilizada).

Uma das medidas que têm feito mais diferença é a agregação das prestações sociais, traduzida na complementaridade do abono às crianças desde que nasçam até aos 18 anos, e que se traduz num apoio de 1.200 euros por ano (100 euros por mês) ou na gratuidade das creches, também incluída.

Atenção ao sobe e desce

O bom indicador constante no Inquérito às Condições de Vida e Rendimento do INE, de Janeiro de 2023, em que o risco de pobreza dos menores de 18 anos diminuiu 1,9%, de 20,4%, em 2020, para 18,5%, em 2021, é bem acolhido por Fátima Veiga, que trabalha no gabinete de investigação e projectos da sede da Rede Europeia Anti-Pobreza (REAP) em Portugal, no Porto.

“Andamos sempre neste sobe e desce”, diz sobre a curva ondulante da taxa de pobreza e exclusão social, que tanto tem períodos de aumento do risco para as crianças, como anos em que as notícias são mais animadoras. Neste caso concreto, pode ter a ver com as transferências sociais. O aumento do abono de família pode ter contribuído para descer a taxa de pobreza de 2020 para 2021”, analisa a socióloga que na REAP tem por principal área de trabalho e de investigação a infância e juventude, em particular a pobreza infantil.

No entanto, nota Fátima Veiga, que trabalha na REAP desde 1997, o caminho do combate à pobreza infantil é longo e sinuoso. “Estamos a viver com uma inflação alta, que se reflecte em todas as áreas da nossa vida e muito no crédito à habitação. A situação é mais difícil para todas as famílias e não só para as das classes mais baixas”, alerta.

“Há muitas notícias de despejos, de famílias em que os dois membros do casal trabalham e não conseguem pagar as contas da casa. E nestas famílias há sempre crianças”, destaca Fátima Veiga.

Por isso, “é muito difícil ter crianças, é essa a razão de sermos um país com um índice de envelhecimento dos mais altos”, explica. “Temos de ter um nível de acolhimento pleno das famílias migrantes e, além disso, criar mais medidas de apoio à natalidade", aponta.

E termina com mais um alerta: “Portugal é um país com salários muito baixos. E esses salários muito baixos colocam os casais que trabalham em grandes dificuldades para pagar as contas mensais, o que torna muito difícil tomar a decisão de ter filhos.”


A pobreza na infância e nos mais velhos, as privações materiais e sociais, as diferenças regionais e os desafios do custo de vida. Nesta série editorial, o PÚBLICO faz um raio X ao impacto da pandemia de covid-19 em Portugal, promovido pela Fundação ‘la Caixa’, do BPI e da Nova SBE, promotores do estudo Portugal, Balanço Social 2022, publicado em 2023.

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