A desigualdade voltou a disparar. Retrato no Oeste por entre golfe e barracas

A região centro concentra maior nível de desigualdade, de acordo com o relatório Portugal, Balanço Social. Numa fracção desse extenso território, às portas de Lisboa, disparam os alarmes sociais.

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Daniel Rocha
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Na região do Oeste, ali à entrada ou à saída da Área Metropolitana de Lisboa, consoante a direcção, há cinco campos de golfe incluídos em resorts de luxo – e um sexto foi à falência há poucos anos. É uma concentração de perto de dez por cento do total do continente (53). Ficam todos abaixo das Caldas da Rainha e num triângulo formado por Peniche, Óbidos e Torres Vedras. Um triângulo que serviu de base para um retrato sobre desigualdade a partir do relatório Portugal, Balanço Social, elaborado por uma equipa coordenada por Bruno P. Carvalho e Susana Peralta, com o investigador Miguel Fonseca. A grande conclusão é que a desigualdade voltou a disparar, depois de, entre 2007 e 2019, ter vindo a diminuir. Peniche sobressai por no concelho conviverem resorts com barracas.

Quando se fala em região centro é preciso explicar que o relatório dos investigadores da Nova Business School of Economics trabalhou com as NUTS, acrónimo de “Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos”, um sistema hierárquico de divisão do território em regiões que vem dos anos de 1970, quando foi criado pelo Eurostat. Em concreto, este trabalho incide nas NUTS II, que divide Portugal, para fins de análise estatística, em sete regiões: Norte, Centro, Área Metropolitana de Lisboa, Alentejo, Algarve e regiões autónomas da Madeira e dos Açores. O Centro, que concentra a maior desigualdade aqui abordada, começa abaixo de Lamego, inclui a região oeste e termina onde começa a Área Metropolitana de Lisboa e o Alentejo, incluindo oito sub-regiões e 100 municípios.

Santarém é um deles e, por lá, há uma organização muito activa e poderosa no tecido socioeconómico: a Nersant – Associação Empresarial da Região de Santarém.

“Por trás desta situação de desigualdade, temos a região centro, por um lado, como um factor importantíssimo de equilíbrio social e, por outro, de empregabilidade”, comenta o empresário e presidente da Nersant, Domingos Chambel, destacando o papel de vitalidade do distrito de Santarém através da diversidade das actividades de negócios, numa região que é das mais importantes para o sector da alimentação.

“Entretanto, há bolsas de riqueza e bolsas de pobreza, sendo estas mais no interior e aquelas mais no litoral”, analisa e vira-se para o Oeste. “Quantos hotéis e campos de ténis eles têm lá? A população que vem de fora, chega ao Oeste com melhores condições para desfrutar do mar e dos campos de golfe”, sublinha o empresário.

“No interior, há mais bolsas de pobreza também porque a mobilidade é um factor de estrangulamento, porque além de haver menos acesso a viaturas próprias, até os transportes colectivos são menos eficazes. No litoral, há maior mobilidade e capacidade para se deslocarem de carro”, nota Domingos Chambel.

De olhos virados para o Oeste, vê-se que esta sub-região ocupa uma faixa litoral em que o ponto mais distante do Atlântico, no extremo este do concelho de Alenquer, está a menos de 50 quilómetros. O Oeste é reconhecido, especialmente, pela agricultura e pelos seus produtos estrela: a aguardente da Lourinhã (e os vinhos da região de Lisboa), a pêra-rocha e a maçã de Alcobaça. Ou pela indústria cerâmica das Caldas. Ou pelos Supertubos de Peniche, que atraem o mundo com provas internacionais, turistas e migrantes.

Peniche é, aliás, um grande paradoxo de desigualdade económica e social. Ponto de interesse turístico e de veraneio, com actividades para os mais endinheirados, como o golfe, mesmo ali à mão (Óbidos, capital desse desporto na região, fica a cerca de 30 quilómetros), os resorts turísticos, as condições de vida que a agitação de Lisboa não consegue proporcionar, sobretudo para agregados com filhos. Mas, como um pouco por todo o país, sente-se a especulação imobiliária, com os custos altos alimentados pela procura de turistas, de pessoas que migraram de Lisboa com rendimentos superiores e estudantes – a Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar tem cerca de 1500 alunos.

A habitação é um dos grandes problemas da cidade e arredores. No início do século XX, a indústria de pescado levou várias comunidades de diferentes zonas do país, sobretudo piscatórias, como as de Viana do Castelo, Póvoa de Varzim ou do Algarve para a grande e fundamental Fábrica do Fialho. Como diz uma técnica da Câmara Municipal de Peniche (os contactos do PÚBLICO com a autarquia foram improdutivos), “fizeram-se umas barracas, ali pelos anos 40 e a própria fábrica esboçou uns edifícios para albergar os trabalhadores”. Sob anonimato, por entender que devem ser as instituições da administração pública a fornecer a informação, esta perita em temas socioeconómicos recorda que a seguir à II Guerra Mundial “foram construídos dois bairros, que hoje ainda são conhecidos como a Fundação Salazar velha e a nova” e que, “nos anos 80, foram feitos mais dois bairros sociais na cidade”. Ou seja, perante a pressão das necessidades de habitação da população, foram sendo feitos remendos habitacionais. Actualmente, com uma estratégia local de habitação em vias de conhecer a luz do dia, a autarquia tem à volta de 300 fogos e vai receber alguns do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, gerido pelo Estado, e que detêm cerca de seis bairros – entre IHRU e câmara, haverá cerca de 1500 fogos sociais em Peniche, embora uma boa parte já esteja a passar para as mãos dos privados à boleia da galopante onda imobiliária que tem varrido o país.

Peniche é um concelho com cerca de 27 mil habitantes e a cidade-sede alberga um pouco mais de 13 mil. Como em todas as localidades, há famílias de grandes posses, sobretudo com rendimentos industriais (das conservas aos congelados) e da agricultura. E há uma grande franja pobre ou no limiar da pobreza. A população dos rendimentos baixos vive da pesca e da agricultura, ambas actividades com rendimentos incertos e que não permitem sequer planificar o futuro, como negociar empréstimos para melhorar a situação habitacional.

“Trabalho na área social e, há dois anos, nas equipas de rua, com uma franja da população muito pobre. Aqui em Peniche, é mesmo muito pobre. Peniche é uma península e é como uma ilha que se fecha sobre si própria”, relata Rosalinda Chaves, psicóloga que trabalha na Associação Acompanha. “Peniche é a capital da onda, do surf, do Baleal, do boom do turismo e dos grandes resorts entre a lagoa de Óbidos e o Baleal. Mas temos um problema grave com o consumo e o tráfico de droga e, em média, temos 40 pessoas no tratamento de metadona, que ultrapassa as 100 se juntarmos os centros de saúde”, complementa a psicóloga.

“A prática comum no mercado de trabalho são os ordenados mínimos. Há algumas pessoas com muito poder económico, depois, a classe média e muitas no limiar da pobreza, em habitação social, dependentes de subsídios sociais”, diz Paulo Sousa, coordenador da associação. Temos 12 ou 13 bairros sociais e um alto consumo de estupefacientes, com a metadona a atenuar os crimes associados”, acrescenta.

“É um ponto turístico muito atractivo por causa do surf e do campeonato mundo de surf quem tinha segundas casas usou-as para fazer alojamentos locais , que, nos últimos anos, se expandiu bastante, o que se reflecte bastante no problema da habitação”, continua Paulo Sousa, revelando que a associação trabalha “com variadíssimas situações de pessoas sem-abrigo”. E diz que o último levantamento a que teve acesso apontava para cerca de 200 agregados familiares a aguardar habitação social. “Mais de 40 da comunidade cigana, maioritariamente concentrada num acampamento no centro da cidade”, regista.

Numa cidade com severos problemas de pobreza e exclusão social provocados pelas actividades laborais irregulares é evidente que aquele é um centro de tráfico de droga, mas não só.

A psicóloga Rosalinda Chaves constrói uma imagem: “Cria-se o efeito de ilha [o território de Peniche é uma península]: as pessoas que vêm a Peniche dão a volta à ilha junto ao mar e não vêem o que se passa.”


A pobreza na infância e nos mais velhos, as privações materiais e sociais, as diferenças regionais e os desafios do custo de vida. Nesta série editorial, o PÚBLICO faz um raio X ao impacto da pandemia de covid-19 em Portugal, promovido pela Fundação ‘la Caixa’, do BPI e da Nova SBE, promotores do estudo Portugal, Balanço Social 2022, publicado em 2023.

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