Das coisas que interessam

Sobrevivi ao curso de Direito. Sim, ouvi mais álbuns do que li Tomos — foi a minha pequena revolução interior. Por vezes, julgo que devia ter ouvido ainda mais música.

Foto
Megafone P3: Das coisas que interessam Element5 Digital/Pexels
Ouça este artigo
00:00
03:19

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Sobrevivi ao curso de Direito, e sei bem como. A verdade é que, durante os quatro anos de curso, o estudo das leis pouco me interessou — do que gostava mesmo era da sensação de chegar ao átrio da faculdade, que estava em constante ponto de ebulição, e preenchido por alunos mais ou menos confusos, de headphones nos ouvidos. Sim, ouvi mais álbuns do que li Tomos — foi a minha pequena revolução interior. Não estou arrependido. Por vezes, julgo que devia ter ouvido ainda mais música.

Agora que o curso ficou no passado, valorizo a experiência de ter estudado naquela casa centenária e pouco, muito pouco, virada para o presente. Apercebo-me também de que, de um modo macabro e sádico, fui feliz, e pude partilhar essa felicidade com amigos, que começaram por ser simples colegas de anfiteatro.

Triste, mas expectavelmente, já esqueci grande parte das lições que me foram dadas. É verdade que nada fiz para assegurar a sua conservação. Os ensinamentos prescreveram. Ainda assim, a minha memória académica não vazou por completo, já que me lembro de alguns apontamentos residuais e de várias sensações — aqui, entendidas como verdadeiros insights — que fui registando durante as aulas mais aborrecidas.

Fui particularmente mau aluno à cadeira de Direito das Coisas. No início, não esperava esse desfecho, já que estimo intensamente as coisas de que sou o proprietário ou um mero usufrutuário: valorizo o carro que conduzo; tenho consciência da riqueza que os meus discos e livros me proporcionam; e trato bem dos blusões que furto — e não roubo, porque essa acção envolve um certo nível de violência — ao meu pai (claro, da usucapião percebo muito).

Enfim, estive perto de chumbar à cadeira, mas lá me aguentei. Na altura, andava meio desconcentrado, ou seja, totalmente apaixonado. Estudava pouco, mas dou-vos a garantia de que tentava alterar essa má prática. Os manuais que versam sobre coisas são particularmente chatos, contudo, um dos livros tinha um título, copiado de tantas outras obras de Direito, que imprimia sempre um sorriso na minha cara de estudante ensonado e entediado.

Chamava-se "Das Coisas", acho. O meu interesse pela cadeira ficou-se por aí. Era, por isso, um livro sobre as coisas e das coisas… Mas de que coisas? Pois, das coisas que não interessam — ou das que não interessam assim tanto, quando comparadas com outras coisas efectivamente relevantes.

Há coisas tão boas na vida e, mesmo assim, um determinado professor de Direito achou por bem escrever sobre certidões de registo predial. Compreendam o meu desalento. Sempre tive noção de que cursava leis, mas alguns dos conteúdos programáticos davam-me a volta à cabeça. Preferia ter lido sobre outro tipo de coisas, como, por exemplo: as coisas que sentimos uns pelos outros, mas não temos coragem de exprimir; as coisas que sonhamos; as coisas que nos dão força; as coisas que nos magoam; as coisas que nos fazem sentir vivos; entre tantas outras coisas.

A academia não escreve sobre estas coisas em específico. Compreendo. Não quero, de todo, menosprezar a área dos Direitos Reais, pois é realmente importante para qualquer sociedade que se diga democrática e livre. No fundo, reconheço que devia ter prestado mais atenção às lições escritas destes professores, mas também não me arrependo de ter passado as minhas tardes na biblioteca da faculdade a ler outro tipo de livros — os que discutiam as coisas absolutamente relevantes.

Sugerir correcção
Comentar