Jovens e de bolsos vazios

Ninguém fala da ruína financeira que a Feira do Livro representa para muitas famílias portuguesas.

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Megafone P3: Jovens e de bolsos vazios Maria Abranches
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Durante mais de duas semanas Lisboa finge que sabe ler. Deslocamo-nos à Feira do Livro como se fôssemos ao supermercado e de repente as nossas despensas tivessem ficado vazias. Há quem faça listas:

  • A poesia completa de Cesário Verde;
  • Tolstoi para acompanhar os bifes;
  • Trezentos gramas de Gonçalo M. Tavares;
  • Duas garrafas de D.H. Lawrence;
  • Virginia Woolf em cura de doze meses.

Vamos esvaziando as carteiras, banca após banca, e riscando da lista a nossa fome erudita para encher o estômago de vocábulos. Muitos destes livros nunca chegarão a ser lidos, mas farão viagens em vão até ao Algarve ou serão sepultados numa prateleira alta e intocável.

Afinal, qual é a diferença entre uma lata de atum e um romance de Lobo Antunes? É que os livros não ficam fora de prazo. Podemos comê-los anos depois, cheios de bolor nas páginas, com verdete a emoldurar a fotografia do autor, isto se as traças não se tiverem servido primeiro. Os livros, ao contrário das pessoas e da prateleira dos frescos, não expiram no mês que vem.

Por isso, este ano decidi inverter o propósito da Feira do Livro e decidi escrevê-la. No meio de lombadas mistas, ensaios aromatizados e biografias sumarentas fiz uma greve de fome e resisti-lhe. Ao invés da lista de compras habitual levei um bloco de notas azul e uma caneta sem tampa que encontrei no fundo da mochila.

Escrever rodeado de livros de autores publicados, sob o olhar lunático de Dostoievski nas capas d’O Jogador, parece um contra-senso. Quase como fazer amor numa Igreja. Pelo menos é mais económico, já que enquanto espalho tinta nestas folhas não estou a abrir o fecho da carteira.

Ninguém fala da ruína financeira que a Feira do Livro representa para muitas famílias portuguesas. Tenho uma tia que guarda o subsídio de Natal, por inteiro, só para gastar na lateral direita.

O som de um carrinho de compras, arrastado pela calçada por uma mulher de meia-idade, afasta estes e outros pensamentos. É certo que vai enchê-lo de romances pré-adolescentes, vendidos aos milhões na América.

Faço sempre o mesmo percurso: contorno a estátua do Cutileiro, deixo que a gravidade me empurre pelo corredor direito, e as minhas mãos atiram-se às primeiras edições. O toque nas páginas ainda virgens demora-se, é sensível e terno. Os dedos são bons ouvintes.

Fecho o livro, volto a pô-lo na prateleira, como se fizesse a cama depois de uma noite de paixão, e fico a observá-lo. De maneira geral, quanto melhor o livro, pior a capa, até porque um bom livro não tem nada a provar. A não ser aquelas editoras que tentam objectificar os seus escritores, vestindo Fernando Pessoa com capas provocadoras e chamativas, que são o equivalente a lingeries literárias.

Nesta fase já possuímos o livro, mas não de maneira física, apenas de forma afectiva. Vamos buscá-lo com a mão esquerda pela lombada, separamo-lo dos seus irmãos gémeos, sussurramos-lhe no título:

- És meu.

Só quando voltamos o livro ao contrário para ler a sua sinopse é que percebemos que este não nos é fiel. Andou a enganar-nos o tempo todo com outra (a editora) que lhe colou quatro dígitos: 18,85 euros.

O preço. Olhamos para o preço, franzimos e desfranzimos a testa, e ele não sai de lá. O nosso amor tem um código de barras, a relação altamente profunda que desenvolvemos nos últimos 50 segundos com aquelas 200 páginas tem um custo que não podemos pagar.

Recuamos, fazemos contas com os dedos, e rezamos para que o cheque de 100 euros, prometido pelo ministro da Cultura para os jovens gastarem irresponsavelmente em literatura, tenha chegado logo à noite à nossa caixa de correio.

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