A temperatura média no planeta está a aumentar – e, com ela, aumentam também os riscos de desastres naturais capazes de destruir colecções de arte, monumentos e locais históricos. Um relatório divulgado este mês nos Estados Unidos sublinha que museus e instituições culturais precisam de estar bem equipados para responder a estes desafios, procurando proteger objectos e paisagens únicos, mas sem deixar para trás as comunidades que lhes atribuem significado.
“Embora a crise climática represente uma ameaça existencial ao património cultural em todo o mundo, é possível uma mudança positiva se estivermos dispostos a agir com urgência e ousadia”, refere o relatório intitulado Held in Trust. O documento foi desenvolvido, ao longo de quatro anos, pela Foundation for Advancement in Conservation (FAIC) em cooperação com o National Endowment for the Humanities (NEH), dois organismos públicos norte-americanos.
“Simplificando, o objectivo deste relatório é a acção”, alertam os autores do documento, para o qual contribuíram mais de 150 especialistas. O estudo cobre áreas que vão da tecnologia à ética, passando pela equidade, diversidade e inclusão. A crise climática encabeça a série de relatórios temáticos e constitui, segundo o Held in Trust, uma “ameaça existencial”, com efeitos profundos em todas “as descobertas e acções futuras”.
“Um património cultural é algo tão vasto como uma cidade e uma catedral ou tão pequeno como uma fotografia de família. Todos nós podemos ser afectados por fenómenos como incêndios, cheias ou tornados. Tudo isto pode tocar-nos de uma forma muito pessoal. O património cultural pode ser uma terra sagrada para povos originários ou um conjunto de fotografias que temos numa cave – uma vez que perdemos estas coisas que são importantes para nós, também perdemos histórias, que deixam de poder ser partilhadas”, explica ao PÚBLICO Pamela Hatchfield, coordenadora do projecto Held in Trust.
Após a publicação do relatório, o trabalho para tornar as instituições culturais nos Estados Unidos mais resilientes vai continuar. Através de um financiamento extra anunciado em Setembro de 2022, no valor de 500 mil dólares (cerca de 458 mil euros), vão ser ainda desenvolvidas novas ferramentas no âmbito do programa Recursos de Resiliência Climática para o Património Cultural.
“O financiamento apoiará a criação de um mapa interactivo de riscos climáticos, módulos de aprendizagem e comunidades com interesses comuns para ajudar instituições culturais ou ligadas ao património cultural a prepararem-se e a mitigarem riscos ambientais relacionados com o clima”, refere uma nota de imprensa.
O património também é a comunidade
Quando se fala de arte e património, o que está em causa não é necessariamente um quadro, uma estátua ou um castelo. “O património nem sempre é tangível, também podemos estar a falar de tradição oral no caso de comunidades que são obrigadas a migrar. Geralmente, quando há um desastre, geralmente há outro a seguir. Se há um furacão, depois uma comunidade inteira pode ficar sem electricidade e sem água potável”, explica Stephanie Shapiro, que lidera o programa de recursos de resiliência climática.
O relatório encoraja vivamente as instituições culturais a terem planos de acção em contexto de emergência, documentos capazes de determinar as medidas a tomar antes, durante e depois de fenómenos climáticos extremos. É importante identificar riscos e desenhar estratégias, medidas de adaptação e redução de danos, sem esquecer o envolvimento das comunidades visadas.
“O primeiro passo é a avaliação. Quais são os riscos e as vulnerabilidades? Qual é o tipo de património cultural que está em causa? Quais são os armazéns disponíveis para mudar as peças de lugar [em caso de necessidade]? É preciso olhar para tudo isso, mas sobretudo para as pessoas – temos de cuidar delas. E não é só sobre a sua organização, é sobre com quem podemos colaborar, partilhar recursos. Um desastre não afecta uma instituição, afecta uma comunidade inteira, uma região”, afirma Stephanie Shapiro numa videochamada com o PÚBLICO.
Cuidar das pessoas também implica assegurar boas condições para quem trabalha em locais que poderão estar mais expostos, por exemplo, ao crescimento de fungos. “Haverá um aumento de desastres e emergências que resultarão em crescimento de bolor em edifícios e no património cultural, o que terá um impacto negativo na saúde do pessoal, se não forem devidamente geridos”, refere o relatório.
O documento também alerta para os efeitos lentos da crise climática. A subida dos termómetros do planeta traz de arrasto “incógnitas” relacionadas com a forma como os edifícios responderão a alterações na ecologia das pragas. O controlo de infestações de insectos em colecções e arquivos pode exigir, por sua vez, medidas que não são exactamente amigas do ambiente.
“Todos nós sabemos que o controlo climático é um dos aspectos mais intensos em carbono do sector de conservação”, nota Pamela Hatchfield, referindo que várias organizações estão hoje à procura de fontes energéticas mais amigas do planeta. Esta e outras questões difíceis têm gerado um debate interessante no sector da arte e da conservação, que parece estar mais atento à própria pegada ambiental e empenhado em encontrar soluções mais sustentáveis.
Em Portugal, por exemplo, a Fundação Gulbenkian realizou o estudo “O impacto ambiental de uma exposição: avaliação de ciclo de vida de Europa Oxalá”. O objectivo era analisar a pegada de carbono daquela exposição apresentada em Lisboa em 2022. O trabalho concluiu que as principais fontes de emissões de gases com efeito de estufa foram a deslocação de pessoas (61%) e o consumo de energia (31%).
“O mundo da arte é, neste momento, lugar de um importante debate no contexto alargado do combate às alterações climáticas, pela preservação dos ecossistemas e espécies e pela habitabilidade do planeta. É também um local de produção de conhecimento, de discussão e troca de ideias, bem como de experimentação para uma sociedade mais sustentável”, escrevem Miguel Magalhães e Louisa Hooper no prefácio da publicação.
Agir já, um passo de cada vez
O esforço por tornar as instituições culturais mais resilientes é, segundo o relatório, algo que exige acção imediata. E, para agir, o método sugerido é partir o desafio em várias partes e começar por uma das áreas identificadas.
“As organizações podem preparar-se para responder aos desafios climáticos sem passos enormes. O que é realmente importante é dar os primeiros passos, tentar detalhar como é o processo – caso contrário, as organizações ficam sobrecarregadas com muitas informações. Escolher um lugar para começar é uma boa maneira de agir. Começar pela avaliação já é um bom começo”, sugere Stephanie Shapiro.
As recomendações contidas no relatório estão ancoradas nos museus e no património dos Estados Unidos, mas podem guiar ou inspirar medidas em organizações de outros países. “Se por um lado estamos a focar localmente, por outro o nosso relatório tem definitivamente um impacto global. A nossa missão é salvar e proteger o património cultural para as futuras gerações”, diz ao PÚBLICO Lissa Rosenthal-Yoffe, directora executiva da FAIC e do Instituto Americano para a Conservação.