O primado da lei ou o retorno à selva

Não, aqui não existe qualquer corporativismo. Existe, sim, a percepção de que, sob a falácia do acesso livre às profissões, se destrói e corrói mais um bom bocado do Estado de Direito.

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Quem me conhece, sabe que sou insuspeito de defender a Ordem dos Advogados. Não porque não lhe tenha respeito institucional como cidadão e advogado, mas porque nunca gostei propriamente de associativismos que, em meu entender, levam muitas das vezes à defesa de interesses corporativos que nada têm de salutar. Mas sei, evidentemente, que isto resulta de uma opinião pessoal que tenho sobre certos aspectos da vida em sociedade, o que não me impede de reconhecer mérito à existência da Ordem, assim como, de resto, à existência de outras ordens profissionais.

Há anos atrás, após um artigo de jornal em que me insurgi contra o aumento absolutamente desmesurado dos emolumentos e taxas deliberado no mandato do bastonário Marinho e Pinto, que considerei um verdadeiro atentado à livre escolha da profissão porque significava que o principal critério de acesso era o socio-económico, fui contactado pelos representantes de várias centenas de jovens candidatos a advogados que quiseram saber se me encontrava disponível para patrocinar uma acção judicial contra a Ordem dos Advogados com vista a pôr fim àquilo que na altura era um claro garrote financeiro (para se ter uma ideia, as taxas e emolumentos relativos ao estágio obrigatório na OA passaram de €250,00 para €1500,00 (!) de um momento para o outro). Após reflexão, aceitei o patrocínio “pro bono”, não, repito, porque algo me movesse contra a minha Ordem, mas porque considerei injustas e indevidas as quantias que os candidatos a advogados teriam de despender para terem acesso à profissão.

Infelizmente, tendo em conta a lentidão da justiça deste país, o resultado foi pífio, porque, embora tenhamos ganho a acção com a devolução de parte desses emolumentos a quem os tinha pago e outras pequenas consequências, isso não se traduziu em nada de verdadeiramente importante, já que após diversos anos de batalha judicial, os candidatos a advogado foram tendo de seguir as suas vidas profissionais, ora resignando-se a pagar os ditos emolumentos – sob pena de ficarem definitivamente coarctados de acederem à profissão – ora desistindo desse intento por impossibilidade financeira – e houve, infelizmente, muitos que o fizeram.

Daqui resulta, pois, que, sendo absolutamente contrário a que seja o peso da carteira a decidir quem pode ou não aceder a certa profissão, isso não significa que ache que não devam existir critérios de acesso, como seja a frequência de um estágio e a aprovação num exame final. E nisso, umas vezes melhor e outras pior, há que reconhecer que a Ordem dos Advogados tem cumprido o seu papel.

Ora, começa aqui uma das grandes questões que se colocam neste debate, porque parece que o Governo quer fazer passar a mensagem – de resto, consentânea com a Proposta de Lei das ordens profissionais – que existirem requisitos de cumprimento prévio e obrigatório para a prática de actos de advocacia é mau e constitui uma discriminação em desfavor de quem se licenciou em direito, mas não quis ou não conseguiu ser advogado.

O Governo defende na sua Proposta de Lei que quem se licencia em direito tem as mesmas competências para a prática de alguns actos jurídicos, o que está, muito obviamente, longe de ser verdade. Nesse sentido, decidiu estender a não advogados a possibilidade de praticarem determinados actos até agora reservados a advogados. Exemplos: consultas jurídicas – onde cabem muitos actos próprios de advogado que não se encontram especificados, sendo este um perigosíssimo conceito indeterminado que dará azo às mais variadas más práticas – e a elaboração de contratos, os quais passam a poder ser executados por meros licenciados em direito, assim como a negociação e cobrança de créditos, que passam a poder ser executados por não licenciados em direito.

A justificação dada pelo Governo e contida no comunicado do Conselho de Ministros de 15 de Junho é a de “eliminar restrições de acesso às profissões e melhorar as condições de concorrência”. Se assim é, pergunto-me então por que motivo um licenciado em medicina, sem o internato médico, não pode praticar actos médicos.

Detesto corporativismos e a pior e mais falaciosa crítica que se pode fazer a quem não está do lado do Governo nesta matéria é a de que está a defender um interesse corporativo. Não está. Está apenas a pretender que um conjunto de actos que é essencial para a manutenção de uma organização coerente da sociedade seja levado a cabo por quem não apenas tenha formação específica nesse sentido (o que a Ordem dos Advogados, mal ou bem, assegura através do estágio), mas por quem está sob o jugo de uma entidade de natureza pública dotada de poderes de supervisão e sancionatórios, o qual é absolutamente essencial para assegurar que não se cometem ilegalidades travestidas de assessoria jurídica.

E se, mesmo assim, existem centenas e centenas de processos disciplinares instaurados contra advogados por más práticas de advocacia (basta consultar os registos da Ordem), imagine-se o que não será quando parte desta profissão estiver aberta a meros licenciados em direito, não inscritos na Ordem dos Advogados. Quem supervisionará a sua actividade? Quais as sanções que lhes serão aplicáveis, para além das cíveis ou criminais e somente após anos de tramitação processual nos tribunais até que se produza uma sentença, sem que exista qualquer controlo da respectiva actividade, entretanto? E as regras deontológicas? Os licenciados que prestarem “consultas jurídicas” estarão sujeitos a elas? Ao dever de sigilo, nomeadamente? Afinal, porque deveriam estar, uma vez que não se encontram sob a supervisão da Ordem? Ou haverá uma parte do Estatuto da Ordem que se lhes aplica? E se violarem o sigilo profissional, a quem deverão prestar contas? E quem controlará a sua actividade? Pelos vistos, só os tribunais, que terão mais um ror de processos a que deitar a mão…

Na verdade, o que irá acontecer com esta alteração é que o Estado, que, saliente-se, deveria ser o primeiro garante da legalidade, está a escancarar a porta ao que presentemente se designa por procuradoria ilícita, a qual passará a estar devidamente legalizada e a poder fazer-se tranquila e legalmente (!).

E, já que o Governo parece estar tão preocupado com o desaparecimento dos entraves a uma sã concorrência, ficam as perguntas: os licenciados em direito e todos os demais intervenientes na negociação e cobrança de créditos, podendo praticar actos próprios de advogado, terão de pagar quotas a alguma entidade como os advogados estão obrigados a fazer perante a respectiva Ordem? Antecipando que não terão de o fazer, não significa isso um incentivo para que muitos advogados, sobretudo os que mais não fazem no seu dia-a-dia do que prestar “consultas jurídicas” (que são cada vez mais), abandonem a Ordem e tenham menos uma despesa que, no limite, passa a ser redundante e, por isso, inútil? E não será isto permitir tratar distintamente (uns pagam e outros não) o que é igual (ambos praticam actos próprios de advogados), numa indecorosa e grosseira violação do princípio da igualdade?

Não, aqui não existe qualquer corporativismo. Existe, sim, a percepção de que, sob a falácia do acesso livre às profissões, se destrói e corrói mais um bom bocado do Estado de Direito. Devo confessar que nunca fui daqueles defensores acérrimos dos advogados e do seu papel absolutamente fundamental para a existência de um Estado de Direito, talvez porque tenha nascido com o 25 de Abril e não tenha assistido ao papel fundamental que tiveram em ditadura. Sempre que comparavam advogados e médicos, eu não hesitava em optar pela maior importância dos segundos (os meus Caros Colegas que me perdoem). Mas reconheço agora – talvez tarde demais? – que estive enganado estes anos todos. Agora vejo com clareza o perigo que representa o esvaecimento dos advogados e da respectiva Ordem.

É mais um passo em direcção à selva. Na verdade, de onde todos viemos. Nada, afinal, como as origens.

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