Nos últimos meses, o volume de armazenamento de água nas barragens de Portugal anda num jogo contínuo de sobe e desce. A chuva, embora escassa e intermitente, ajudou a deixar as albufeiras a norte do país numa situação confortável, mas a partir do Tejo para sul tudo se complica. As situações mais críticas estão na região algarvia, nas bacias do Mira e do Sado. A verdade é que este conforto pode durar pouco e tem limites. É preciso que todos (sobretudo os agricultores, mas não só) se preparem para reduzir consumos de água. Este Verão e daqui para a frente.
O boletim semanal publicado pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) sobre o armazenamento das albufeiras nacionais salienta que, no dia 19 de Junho, 41 das 78 barragens monitorizadas apresentavam disponibilidades hídricas superiores a 80% do volume total e apenas 15 tinham volumes de armazenamento inferiores a 40%. Já as reservas totais de recursos hídricos de superfície em Portugal continental atingiam os 10360 hectómetros cúbicos (hm³), cerca de 79% da capacidade total que armazenamento que ascende aos 13.156hm³.
As 42 barragens a norte do Tejo referenciadas no Serviço Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH) apresentavam 5752hm3 no volume de armazenamento. A sul do Tejo, as 34 barragens localizadas nas regiões do Alentejo e Algarve armazenavam 4578hm3. Sem Alqueva o volume desceria para 1356hm³.
Comparando estes dados com os valores observados em Junho de 2022, a água então armazenada, em 60 albufeiras portuguesas, atingia os 6514hm³. No entanto, em 2023, o SNIRH incluiu mais 18 barragens no seu sistema de monitorização que, no seu conjunto, representam um acréscimo de 2 026 959hm³ na capacidade de armazenamento, a norte do Tejo.
Contudo, os ganhos em recursos hídricos não são muito significativos. Em meados de Dezembro de 2022, a água armazenada nas albufeiras monitorizadas pelo SNIRH atingia os 10.900hm³ para atingir no final de Janeiro deste ano, 11.235hm³. A partir de então assistiu-se a um invulgar sobe e desce nos volumes de água armazenada. Se numa semana aumentava 10 ou 20hm³, na semana seguinte descia em proporção semelhante, para se situar a 19 de Junho nos 10.360hm³, perspectivando-se que durante o período estival se assista a descidas mais significativas.
É com este volume de água de superfície que o país vai suprir parte das necessidades da agricultura (4200hm3) e cerca de 67% das necessidades do consumo humano (985hm³). Todavia, o problema está nas dificuldades de acesso à água disponível, quando a agricultura de sequeiro e a pecuária ocupam 80% dos 3,7 milhões de hectares da superfície agrícola útil (SAU) em Portugal.
Seca estrutural
A seca é, nos dias de hoje, estrutural e a escassez de água “é motivo de grande preocupação” nas bacias dos rios Sado e Mira e nas bacias hidrográficas do Algarve, assim como do Nordeste transmontano e no Sul da Beira interior, refere ao PÚBLICO Vítor Rodrigues, dirigente da Confederação Nacional de Agricultura (CNA).
“Mesmo com as chuvas tardias” que surgiram em meados de Maio e até ao presente, os níveis de água no solo, sobretudo no Nordeste transmontano e no Sul da Beira interior, “mantêm-se baixos”, confirma Vítor Rodrigues. Dá conta de que os danos causados pela escassez hídrica ocorreram entre Fevereiro e Maio, período de tempo “em que praticamente não choveu” e os pastos, forragens e fenos acabaram por se perder.
Acresce ainda que “os agricultores estão a suportar as consequências de dois anos seca consecutiva” e uma “dramática escassez de alimentos para os animais” frisando que “não é apenas no Alentejo que o gado está a ser vendido”. No interior centro e norte também está a acontecer”. Durante a seca de 2022 “ainda havia reservas de alimentos na Espanha, mas este ano eles [espanhóis] estão piores do que nós e não há alternativas que não seja vender os animais”.
Comparando a situação que se vive no território do minifúndio com as grandes extensões de terras afectas ao regadio de culturas superintensivas, o dirigente da CNA refere que no Sul do país “existe Alqueva, mas tem um alcance limitado”, sublinhando o contraste que é observar a utilização de água em “grandes quantidades” na agricultura intensiva e, ao lado, o sequeiro não tem uma gota de água para matar a sede aos animais.
O sequeiro em Portugal “apenas tem acesso à água que vem do céu”, mas faltam meios para a reter no Nordeste transmontano, diz o dirigente da CNA que considera uma boa decisão o Governo simplificar os procedimentos para a instalação de charcas e pequenos reservatórios de água, evitando na “maior parte dos casos” a necessidade de licenciamento.
Restringir consumos
“É preciso evitar a utilização das águas subterrâneas”, vincou a ministra da Agricultura e Alimentação, Maria do Céu Antunes, frisando que vai ser proposta uma alteração à Lei da Água, para reforço das competências de controlo da água superficial e subterrânea.
A reserva de água em Alqueva continua a ser a maior referência no armazenamento de água em Portugal. Mas mesmo esta infra-estrutura, pela sua função de multiusos (rega, produção de energia, indústria – complexo de Sines –, consumo humano e turismo), está confrontada com a necessidade de começar a restringir os consumos.
Para além do aumento que vai ser aplicado ao preço da água a utilizar na rega, os agricultores terão de passar a regar em função do volume de água estabelecido, antecipadamente, pela Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva (EDIA), para cada tipo de cultura.
A produção de energia só utiliza o livre turbinamento (a água segue Guadiana abaixo) até à cota 148,68 acima do nível do mar. No dia 18 de Junho (últimos dados fornecidos pela EDIA) a cota máxima estava nos 147,98. Nestas condições “a produção de electricidade não gasta água do grande lago”, explicou ao PÚBLICO José Pedro Salema, presidente do conselho de administração da EDIA.
O sistema de produção de energia dispõe de um contra-embalse que é a barragem de Pedrógão. Para as duas centrais hidroeléctricas de Alqueva produzirem energia, necessitam da força de 30 ou 40 milhões de metros cúbicos de água que fica depositada na albufeira de Pedrógão, “e, depois, muitas vezes no mesmo dia, mas a outras horas, essa mesma água volta para Alqueva”, prossegue Pedro Salema esquematizando o modus operandi.
O consumo de energia não é igual ao longo do dia. À noite é quando se gasta mais, “porque toda a gente quer jantar”. “A redução no consumo verifica-se quando as unidades industriais reduzem a sua laboração entre 16h e as 18h e o mundo do trabalho regressa a casa. E quando há sol, e mais vento, é tempo de recorrer aos sistemas renováveis que suprem a menor procura de energia.”
Recorre-se à energia eólica e solar, quando esta é muita e mais barata para Alqueva colocar em funcionamento o sistema de reversão para devolver à grande albufeira a água que debitou, quando a produção de energia foi mais rentável.
Este processo com recurso ao sistema reversível precisou em 2021 de dois mil e oitocentos milhões de metros cúbicos para produzir energia, e foram devolvidos para montante dois mil milhões e setecentos ou oitocentos para cima. “Portanto Alqueva não gastou água para produzir eletricidade”, conclui o presidente da EDIA.
O mesmo não se pode dizer em relação aos consumos do regadio. Entre Janeiro a Maio foram debitados para os três subsistemas de rega (Alqueva, Pedrógão e Ardila) 21 hm³. Com a chegada do Verão, Salema acredita numa “subida mais significativa” nos consumos de água, para uma área a regar que rondará os 130 mil hectares, e que inclui os blocos de rega do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva, e os blocos designados de confinantes (perímetros de rega de Odivelas, Monte Novo, Morgavel (complexo Sines), Fonte Serne, Alto Sado, Enxoé (consumo humano em Serpa e Mértola) e Vigia).
Alqueva garante ainda o caudal ecológico do Guadiana a montante de Pedrógão. A EDIA salienta que entre Janeiro e Maio debitou 188hm³, a que acresceram mais 67hm³ provenientes dos afluentes do Guadiana, quando Portugal está obrigado pela Convenção de Albufeira a lançar no troço internacional do rio 177hm³.
Em Espanha o drama cresce
E em Espanha? Em Espanha a escassez de recursos hídricos está marcada por cenários dramáticos. As 33 barragens que o país vizinho construiu na bacia do Guadiana armazenavam no dia 19 de Junho, 2936hm³, quando a sua capacidade máxima é de 9495hm³, um volume de água muito inferior ao concentrado em Alqueva (3210hm³).
Afonso do Ó, especialista em água da ANP/WWF, não augura nada de bom com o agravamento desta situação em Espanha: “Temos de pensar e agir num quadro de partilha dos mesmos problemas que envolvem a Península Ibérica no seu todo [evitando colocar as questões como se fossem diferentes em Portugal e Espanha].”
Também no país vizinho o regadio é prioritário e é o sequeiro que está a apanhar pancada com a escassez hídrica, refere o investigador, tal como em Portugal, destacando que as situações mais críticas se localizam na região algarvia, nas bacias do Mira e do Sado.
“Há um risco cada vez maior para os agricultores do sequeiro.” E tornou-se cada vez mais difícil satisfazer as necessidades de água recorrendo aos furos artesianos, quando a recarga dos aquíferos está a revelar-se mais difícil. Mesmo assim, Afonso do Ó salienta que o problema maior não está na diminuição da precipitação atmosférica.
O que é grave é estarmos a assistir ao esgotamento de águas subterrâneas, até de águas fósseis (que se encontram a maior profundidade) para regar oliveiras, amendoeiras ou abacateiros. “As nossas responsabilidades vão ser cada vez maiores”, avisa o investigador.