A seca está a causar “uma tragédia” no Alentejo e a carne pode faltar no mercado

Quase não chove desde Janeiro, não há pasto para os animais e a alimentação está esgotada no mercado. Os agricultores estão a vender os bovinos e alguns temem que falte carne no próximo ano.

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Os campos do Alentejo estão secos Maria Abranches
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Os animais são divididos por lotes antes do leilão Maria Abranches
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À espera do leilão Maria Abranches?
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Os bovinos são apresentados aos licitadores Maria Abranches?
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A caminho da pequena arena Maria Abranches?
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Maria Abranches
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A entrada é estreita Maria Abranches?
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Mais um lote a caminho da arena Maria Abranches?
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Parque de leilões de Portalagre Maria Abranches?
#MAM Maria Abranches - 14 de Junho 2023 - Parque Leilões de Gado de Portalegre, Alentejo
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Parque de leilões Maria Abranches?
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Maria Vacas Carvalho Maria Abranches?
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Os pastos estão secos Maria Abranches?
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Ainda a Primavera não ia a meio e já havia agricultores alentejanos a admitir vender o seu gado bovino por não terem alimentação para lhe dar. A seca, que matou os terrenos de pasto e secou as fontes de água, e a inflação, que fez disparar os preços de quase tudo ligado ao mundo rural, são as razões do que alguns classificam como “uma tragédia”. Com o Verão à porta, a situação continua a agravar-se, até porque, mesmo para os que tenham alguma folga financeira, “não há alimentação disponível no mercado”.

A venda de bovinos que deviam estar para criação não pára de crescer, como o PÚBLICO comprovou num leilão de gado em Portalegre. Alguns agricultores admitem mesmo a hipótese de, no próximo ano, haver “muito menos” carne nacional nas prateleiras dos supermercados e nos frigoríficos dos talhos e temem que os produtores com mais dificuldades comecem a abandonar os animais.

Queixam-se ainda da falta de apoio do Governo, que “só agora abriu as candidaturas para os apoios” e de “uma má negociação da Política Agrícola Comum (PAC)” por parte da ministra da pasta, Maria do Céu Antunes, “que ainda vai penalizar mais os agricultores”.

“Muitos não vão sobreviver”

Na herdade da Cabeça Gorda, na freguesia de Veiros, no concelho de Estremoz, António Martelo, 54 anos, olha com visível tristeza para uma parte do terreno de pasto que se espalha por alguns dos cerca de 500 hectares da sua propriedade. “Por esta altura, o pasto devia estar pela altura do joelho e está como se vê”, diz. E o que se vê é erva “morta” e seca, sem um ponto de verde que sirva para os bovinos mastigarem.

“Não tenho memória de uma seca tão terrível. Em Dezembro do ano passado, as fortes chuvadas causaram estragos em várias culturas e inundaram os pastos. Daí para cá quase não choveu. Passaram seis meses, vamos entrar no Verão e não vai haver água seguramente durante mais quatro meses. Muitos [agricultores] não vão sobreviver. Não lhes resta nada mais do que vender o gado, porque não têm comida para lhe dar. Até já me falaram que alguns estão a vender as propriedades”, afirma este engenheiro agrónomo.

https://www.publico.pt/2023/04/21/azul/noticia/quase-80-territorio-portugal-continental-ja-situacao-seca-2047012

O agricultor, que faz produção biológica e tem actualmente cerca de 150 cabeças de gado bovino, conhece bem a “situação terrível” que os agricultores do Norte alentejano estão a viver. Não só gere a sua propriedade como tem uma empresa de consultoria rural que presta serviços a 47 explorações, que vão “desde a Amareleja a Idanha-a-Nova”.

“Quem não tem um pé-de-meia — e são muitos — está a passar por dificuldades terríveis. Uma vaca come cinco quilos de feno e dois quilos de farinha por dia. Num número redondo, alimentar um animal custa dois euros por dia. E o problema é que, mesmo quem tem algum dinheiro, não encontra alimentação à venda no mercado. Está tudo esgotado”, garante.

António Martelo diz ter conhecimento de alguns agricultores que estão a vender os animais mais velhos, “mas não estão a adquirir animais de substituição”. “Sem estes animais, no futuro vai faltar carne no mercado e Portugal só produz cerca de 50% da carne de bovino que consome. E o pior vai ser quando os produtores começarem a abandonar os animais. E isso, se não se tomarem medidas, vai começar a acontecer”, acrescenta.

O empresário lamenta também “a falta de apoios” do Governo: “Em Espanha, os agricultores afectados pela seca já receberam 150 euros por cabeça. Cá ainda só agora abriram os concursos para os prejudicados receberem 50 euros por cabeça e ainda não chegaram os apoios atribuídos devido às inundações do Inverno passado”, conta.

Milhões de euros que não chegam

A acompanhar a visita do PÚBLICO à Herdade da Cabeça Gorda, está Maria Vacas Carvalho, 46 anos. Também ela pertence a uma família de agricultores e é há 20 anos a coordenadora do Agrupamento de Produtores Pecuários do Norte Alentejano —​ Natur-al-Carnes, responsável, entre outras actividades, pelos leilões de gado que todas as semanas se realizam em Portalegre.

“Falam-se em milhões para apoiar os agricultores, mas quem cá anda sabe que só chegam 30 a 40% do que se anuncia. Depois, para concorrer às ajudas, há uma elevadíssima carga burocrática, que faz com que muitos não avancem. Por outro lado, a nova PAC foi muita mal negociada pela ministra da Agricultura e os apoios que vão chegar são muito baixos. O que se está aqui a viver é uma tragédia”, diz, concordando que “no próximo ano pode faltar carne no mercado. “Corremos o risco de a carne de bovinos criados em Portugal se transformar num produto de luxo.”

“O que é preciso é ‘tratamentos’ preventivos e não ‘paliativos’ como se faz actualmente. É preciso agilizar os processos de ajuda à agricultura”, complementa António Martelo.

A Natur-al-Carnes nasceu em 1993. Todos os anos leiloa cerca de 8600 cabeças de gado pertencentes aos seus cerca de 400 accionistas, num volume de negócio que ronda os dez milhões de euros.

Para não desvalorizar o preço da carne, o agrupamento limita os animais a leiloar, não passando das 250/300 cabeças por leilão semanal. Maria Carvalho revela que os leilões “já estão esgotados até final de Junho”.

“Há muita procura. E cada vez aparecem mais vacas para venda do que bezerros, o que é grave. Não há comida e os agricultores, mesmo com grande sacrifício e contra a sua vontade, têm de se desfazer de parte significativa do seu património animal. Mas atenção, a muita procura de agora pode significar no futuro a falta de animais para vender. Nessa altura, não há leilões, nem carne”, salienta a coordenadora.

Leilões com muita procura

Na passada quarta-feira, havia cerca de 300 animais para leiloar, divididos por 96 lotes, que variavam entre um ou dois machos ou fêmeas adultos e grupos de bezerros de número variável de uma só cabeça, sendo a mais elevada de oito animais. Os bovinos vão ser vendidos para abate, mas também para criação.

O gado foi descarregado por lotes nos longos currais cobertos na véspera, depois de pesados e de funcionários da Natur-al-Carnes verificarem todos os documentos dos animais.

O leilão está marcado para as 15h, mas, por volta das 13h, já há gente a circular entre os currais para apreciar o gado. Dionísio Lopes, 61 anos, tem “uma pequena propriedade” no concelho do Crato, onde cria 60 bovinos. Já ali esteve várias vezes como comprador e vendedor. Na última quarta-feira, foi apenas “observar o gado”.

“Tenho quase a certeza absoluta que uma boa parte das cabeças que hoje vão a leilão são de pessoas que têm de as vender porque já não têm condições para as criar. Não há água, não há alimentação e os preços de tudo para a criação dobraram ou mais ainda. Se tudo continuar assim, vai ser impossível criar bovinos. Todos vamos ter de vender”, afirma.

Uma vaca por 900 euros

A partir das 15h vive-se grande agitação nos currais. Os funcionários Natur-al-Carnes começam a abrir as portas ao gado, que, picado e agitado, é conduzido por corredores ladeados por vedações de ferro. Um a um, os animais dos lotes são pesados antes de entrarem por uma de duas portas que dá entrada a uma arena em meio círculo onde são expostos aos potenciais interessados.

Naquele dia, eram cerca de 50, entre licitadores e curiosos que se espalhavam por cinco filas de bancadas instaladas frente ao meio redondel. Um outro funcionário da associação anunciava os lotes, também revelados num ecrã electrónico frente aos licitadores, que faziam as ofertas também por meio digital.

O ecrã revelava o número do lote e de animais a leilão, o peso, a raça, o sexo, idade, o proprietário e o valor inicial da licitação.

No primeiro lote foi apresentado a leilão uma fêmea de 605 quilos de raça cruzada e que tinha por valor-base de licitação 1,50 euros por quilo. Foi arrematada por 1,51 euros/quilo, num valor total de 913,55 euros.

Assim que saem da meia arena as cabeças de um lote por uma porta, logo entram outras pela porta contrária, num processo de grande agitação, mas quase sem erros dos experimentados funcionários.

Do lote número 3 constam cinco bezerros com seis meses e de raça cruzada, com um peso total 1187 quilos. O valor-base de licitação é de 3,10 euros/quilo. Acabaram arrematados por 3,13 euros/quilo, num total de 717,75 euros.

Ao longo das cerca de três horas de leilão os valores dos lotes andaram quase sempre por estes valores. O preço mais alto foi conseguido por um produtor que apresentou a leilão um macho de oito anos, 931 quilos. Foi arrematado por 1629,25 euros.

Francisco Caldeira, 80 anos, assiste atento ao leilão. Diz ter dedicado “toda a vida” à agricultura, Na Herdade das Cevadas, em Campo Maior, com 300 hectares que herdou do pai e cuja gestão já passou aos filhos, que naquela tarde têm gado a leilão. Diz com orgulho ter sido o primeiro presidente da assembleia geral da Natur-al-Carnes e o segundo presidente da direcção.

“A situação que estamos a viver é muito dolorosa. Não há água, nem comida para os animais. Não há onde comprar. Uma pessoa que precise de mil fardos de palha se conseguir 100, já é uma sorte. Há gente que já foi comprar a Espanha e a França, mas também aí já não se encontra. Há malta a vender gado de qualquer maneira nos leilões e matadores. Já viu a dor que é uma pessoa ter de matar os animais por não tem como os criar?”, pergunta.

Também ele tem “muitas críticas” a fazer à ministra da Agricultura, mas opta antes por lhe fazer um pedido: “Venha para o terreno. Venha falar connosco e ver a realidade. Tenho a certeza de que a ministra não sabe a miséria que se está a passar.”

Já depois do leilão, volta a falar com o PÚBLICO. “Sabe o que lhe digo, se não se fizer nada, isto vai tudo acabar muito mal. Muito mal mesmo e, nessa altura, já não há remédios nem dinheiro para resolver a desgraça.”