Como se saem os melhores alunos do ensino secundário quando entram em Medicina?

A maioria dos alunos que entrou em Medicina tem efetivamente um perfil que lhe permite um alto desempenho académico e vai sair-se bem.

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A transição do ensino secundário para o ensino superior não é uma simples mudança de ciclo de estudos ou de estabelecimento de ensino. É um momento importante no desenvolvimento psicossocial, um marco nesse desenvolvimento, com grande impacto individual, mas também familiar.

Enquanto as anteriores transições têm mais características de continuidade, como a permanência no núcleo familiar e de alguns amigos, proximidade à residência, maior estruturação e controlo familiar e escolar, a entrada na universidade tem mais características de rutura, de mudanças significativas que apelam para a autonomia do jovem estudante, num contexto mais desafiador, exigindo indivíduos mais capazes de se autorregular. Simbolicamente, a entrada na faculdade é como a porta (uma delas, pelo menos) para a entrada na vida adulta!

É inevitável que esta transição tenha impacto no desenvolvimento dos jovens, na sua saúde mental e no seu bem-estar. Na maioria dos casos, este impacto é positivo pelas experiências pessoais, afetivas e relacionais que ocorrem neste novo contexto, mais do que as aprendizagens propriamente ditas!

Ser “o melhor”, de um modo simplista, é ser um aluno com notas altas no final do ensino secundário, o que lhe permite ter uma média elevada e a possibilidade de se candidatar ao curso que deseja.

Quem entra em Medicina teve notas muito elevadas no ensino secundário. As médias de entrada foram de 18,9 valores na Universidade do Porto, o curso com média mais alta de todos os cursos em 2022 (suplantou o curso de Engenharia Aeroespacial do Instituto Superior técnico), e 18,25 na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL).

Mas ser o melhor significa muito mais. Ser o melhor implica competências cognitivas, emocionais e sociais. Ser o melhor implica uma interligação, uma gestão destas competências e a sua expressão funcional.

Este ano a média sobe ou desce? Crescem as expectativas e com elas a ansiedade. Alguns vão sofrer até ao dia em que saem as colocações. Será que a média é suficiente para o meu sonho? Para o sonho da minha família?

Os melhores dos melhores entram no curso que pretendem. Os melhores espalham-se em diferentes cursos. Há um grupo de melhores que entra em Medicina. Entram entusiasmados, menos ansiosos, mais expectantes. Como será o percurso a partir daí?

Primeiro dia de aulas. Avisam-se os estudantes: “O curso de Medicina não se faz sozinho.” Procura-se que os estudantes percebam os desafios que vão ter e para olharem à volta, para quem vai estar com eles. Mais avisos: estudo diário, preparar aulas para o dia seguinte, uma carga horária exigente, avaliações escritas e… orais!

No fim do primeiro dia, já há quem diga que vai chumbar na oral de Anatomia…

“Estava habituada a ser a melhor da turma. Aqui somos todos igualmente bons”, refere a Maria, no 1.º ano. O João, também no 1.º ano, sinaliza: “Não me consigo organizar, não sei por onde começar, será que sou assim tão bom aluno?” A Sara, já no 2.º ano, acrescenta: “As minhas maiores dificuldades foram aprender a gerir o tempo de estudo e saber respeitar os meus limites.”

No primeiro ano, começam a surgir perfis de estudantes distintos. Os que se focam totalmente no estudo, declinando convites para sair. Param o ginásio, têm horários de refeições e de sono alterados. Uns conseguem manter as tarefas em dia. Outros tentam, mas apresentam dificuldade em fazê-lo. Ficam desorganizados e perdidos.

O 1.º ano é de confronto e de reestruturação. Ivo (1.º ano): “No secundário, estudava na véspera, lia e memorizava tudo. Não tinha um método de estudo. Sinto que preciso de aprender a estudar.” Outra grande diferença: os que aliavam muitas competências cognitivas a competências emocionais, mais capazes de se esforçar, de antever, de planear e de se organizar, e aqueles que entendiam e memorizavam tudo nas aulas mas com hábitos de estudo muito fracos…

Quando chegam os primeiros exames, a decisão do que estudar; se fazem um estudo detalhado de algumas matérias, mas sem conseguir passar por todas, ou um estudo superficial, correndo todas as matérias, mas não se focando em pormenores; por onde estudar e qual o método que devo utilizar? “Eu tinha o hábito de fazer apontamentos e já não consigo, com tanta matéria.” (Pedro, 3.º ano).

Para alguns, instala-se uma crise. Uma crise de identidade. Porque, para alguns, vai ser a primeira vez que falham. “Quem é que eu sou como estudante? As dificuldades que eu sempre tive em me organizar, com horários, esquecimentos sobre os dias dos testes, ou dos materiais para levar para as aulas, nunca tiveram impacto no meu desempenho. Começam agora a ter.” Continuam a ser “dos melhores”? O contexto mudou tanto: serei capaz da adaptação necessária?

A maioria dos alunos que entrou em Medicina tem efetivamente um perfil que lhe permite um alto desempenho académico e vai sair-se bem. Vai ter sucesso e vai ser capaz de lidar com insucessos. Cresce ainda mais nos anos que se seguem.

Alguns vão ser confrontados com mais dificuldades do que estavam à espera. Porque saem de casa dos pais, mudam de cidade e vão viver sozinhos. Alguns mudam de país. Perdem o apoio familiar na sua rotina diária. Falam ao telefone com os pais, irmãos, avós, amigos… e choram quando desligam. Aumentam as dificuldades económicas de famílias de recursos reduzidos e o estudante sente-se culpado.

Outros descobrem, apenas na faculdade, um perfil de funcionamento enquadrado nas perturbações do neurodesenvolvimento, como perturbação de hiperatividade e défice de atenção e perturbação do espectro do autismo.

Se a crise se prolonga e não descobrem rápido que continuam a ser bons alunos, cheios de competências, pode surgir a doença: ansiedade e depressão são as patologias mais frequentemente no Espaço S, o serviço de apoio psicológico da FMUL.

Mas são mais os pedidos de ajuda para compreenderem as dificuldades que estão a vivenciar. Precisam de se conhecer, perceber como funciona a faculdade, estratégias para os novos desafios. Abrir o leque de hipóteses para resolver novos problemas.

É essencial compreender que fazer Medicina é muito mais do que ficar isolado a estudar. Precisam de aumentar as experiências de vida. Precisam de ajuda para olhar para esta crise como uma oportunidade, saírem mais fortalecidos.

Os melhores alunos do secundário tornam-se bons estudantes na Faculdade de Medicina. Acabam o seu curso, cumprem na Prova Nacional de Acesso (PNA), o último exame, importantíssimo para a escolha da especialidade. O insucesso académico ou o abandono são raros. Mas os custos para a sua saúde mental, o sofrimento por que passam e as dificuldades que têm de atravessar devem de encontrar na instituição de ensino uma atitude de empatia e respostas concretas.

Na FMUL, direção e associação de estudantes fazem por isso. Consultas de Psicologia, mentorias, programas de desenvolvimento de competências, apoio a grupos específicos como os estudantes deslocados, grupos de estudo, orientação vocacional, promoção da atividade física, entre outros. Reflexão constante sobre a saúde mental dos estudantes.

Tal como eles ouviram no 1.º dia, “o curso de Medicina não se faz sozinho.”

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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