Escrevo por vingança à morte

Saber que a morte há-de levar-me um dia para o vazio da inexistência faz-me querer escrever mais e melhor. Como se a minha única vingança da morte fosse escrever.

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Escrevo por vingança à morte, que um dia me fechará os olhos e os livros inacabados, com os seus dedos de gelo, forçando-me ao silêncio definitivo. Escrevo porque amo o silêncio, não o silêncio da morte, mas o silêncio da vida que encontro na palavra escrita.

Aquilo que mais me faz amar a escrita e a leitura é o silêncio das palavras quando impressas no ecrã ou no papel. Um silêncio tão fino e raro que não encontro nada comparável, a não ser talvez a vigília do sono de um filho quando ainda menino.

Escrevo com o corpo todo e carrego a bagagem desde a infância — o choro dos meus pais, o cão rafeiro, o medo da noite. Escrevo porque busco em mim a casa, como o caracol.

Na adolescência, escrever era imitar frases inteiras de grandes escritores e escritoras, criando texto com uma miscelânea ecléctica onde constava Fernando Pessoa, Camões, Henry Miller, José Régio, Eugénio de Andrade, Milan Kundera, Shakespeare e tantos outros. O meu desejo de ser grande, amada e eterna manifestava-se através do plágio naïf, um pastiche de escribas imortalizados pelo tempo, pela história.

Cresci com o ruído estridente da violência no lar e o silêncio dos mortos que trazia na capa dos livros. Escolhi como pais Henry Miller e Anaïs Nin, paradigmas da depravação, do amor e da grande literatura erótica. Foram eles que me educaram na adolescência com o silêncio das suas palavras, fui instruída por dois adultos mortos à época em que eu os lia.

Escrevo porque me quero vingar da morte antes de a conhecer, quero deixar um avanço fruste nessa luta que ninguém ganha. Ninguém luta a sério com a morte, sabe-se que o fim é certo, que a perda é inevitável. Ainda assim, escrever é lutar contra a morte, desforrar-se dela porque talvez não consiga calar tudo por onde passa, talvez não possa apagar tudo aquilo que deixamos. Talvez lhe escape uma ou outra coisa, um livro, uma frase.

Uns anos antes de ele morrer, conheci o poeta e desenhista António Ramos Rosa. Vivia numa residência para idosos, uma moradia num bairro chique de Lisboa que acolhe vários artistas no fim da vida, e eu fui convidada para ir até essa casa para recitar poemas como forma de animar quem lá vivia e quem sempre viveu das artes.

Quando me levaram até ao seu quarto, uma suíte enorme com um janelão que dava para o jardim, deparei-me com um homem sentado à mesa com as calças para baixo, pelos tornozelos. Fiquei embaraçada, sem saber como agir perante a atrapalhação que a minha visita inesperada pudesse causar-lhe. O António olhou para mim da secretária, tal como estava, e não se mexeu. Abriu apenas um sorriso e disse-me para entrar à vontade, voltando a fixar o rosto na direcção da mesa em que se encontrava.

Aproximei-me com receio, era uma situação confrangedora, estar ali, diante de um grande poeta e desenhista admirado por mim e por todos, e que muito provavelmente não se tinha apercebido de que se encontrava em cuecas, despido da cintura para baixo. Ao chegar perto da sua secretária vi então qual era o motivo da sua alienação. Estava a desenhar. Pouco lhe importava quem eu era ou se tinha ou não as calças vestidas. O seu desenho era o rosto de uma mulher com o cabelo comprido, muito simples, belo.

"É para si. Gosta?" Ofereceu-mo. Estimei-o tanto que mandei emoldurar o desenho do António. Durante muitos anos esteve na parede da entrada da casa em que eu morava. O António faleceu alguns anos depois deste episódio. A aproximação da morte, sussurrando coisas como "não vale a pena", "nada vale a pena", parece que nunca o desmoralizou. Muitas vezes, a aproximação da morte para os artistas é, pelo contrário, moralizante. Saber que a morte há-de levar-me um dia para o vazio da inexistência faz-me querer escrever mais e melhor. Como se a minha única vingança da morte fosse escrever.

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