A mulher com quem me cruzei à saída da primeira consulta de psiquiatria

Não sabia o que pensar, a minha franja molhada pingava-me pela cara e tinha os óculos salpicados e embaciados, um clássico nos dias de chuva.

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Megafone P3: A mulher com quem me cruzei à saída da primeira consulta de psiquiatria Freddie Marriage/Unsplash
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O cacilheiro tinha de embater várias vezes na plataforma até poderem amarrá-lo ao cais, como se fosse obrigatório bater à porta que dividia dois mundos — água e ferro — antes de os unir no contacto de chapa com chapa.

Uma ânsia de pernas aguardava dentro e fora da embarcação, sempre expectantes pela troca de posições. Por vezes nem deixavam que o último passageiro pusesse o pé no cais, que logo seguros pares de sapatos invadiam o barco no sentido inverso.

Nos dias como os de hoje, em que os chapéus-de-chuva chocavam uns contra os outros nessa troca de passagem, tornava-se ainda mais difícil evitar o contacto físico entre transeuntes sisudos a caminho do trabalho.

Nesse momento em que várias pessoas tentavam fechar os guarda-chuvas contra um vento que parecia feito de propósito para partir varetas, pus o pé na plataforma do navio e espetei inadvertidamente uma das varinhas de ferro — partida uns dias antes deste incidente e por isso descarnada do tecido, de metal em riste — na orelha de uma mulher que deu um grito e desmaiou de imediato na plataforma do cais, a uns centímetros da fenda que divide o navio e o cais.

Caos generalizado à nossa volta, algumas pessoas assustadas e incrédulas falam alto mas assim que conseguem vencer a luta para fechar as suas próprias sombrinhas, logo seguem a marcha para dentro da embarcação. Ninguém as pode culpar; não fosse eu a responsável pelo episódio, também me encontraria sentada dentro do navio, a cabecear a vida que sonho, como faço todos os dias nos dez minutos de trajectória que me levam até ao trabalho que detesto.

Um homem corpulento de gabardina verde-escura e um dos funcionários da navegadora, coberto por um impermeável, dispuseram-se de imediato a carregar a senhora até debaixo do telhal de passageiros a alguns metros do embarque. Tive de segui-los, não sabia bem o que tinha feito àquela pessoa, contudo, a responsabilidade de algo grave ter acontecido surgia-me no pensamento.

A mulher, uma senhora que tinha perto da minha idade, entre os 45 e os 50 anos, abriu os olhos castanho-claros apavorados, que me fizeram lembrar alguém que não consegui localizar na memória. "Não oiço", disse muito alto, como se fosse mouca. O homem robusto de gabardine e o funcionário de bigode (vira-o agora de frente) faziam-lhe perguntas e notava-se na sua expressão que não os ouvia.

Não sabia o que pensar, a minha franja molhada pingava-me pela cara e tinha os óculos salpicados e embaciados, um clássico nos dias de chuva. Não tive o atrevimento de me pôr ali a limpar os óculos, se a senhora que magoei não ouvia, eu podia muito bem passar sem ver durante um bocado.

Mas não entendia a surdez da mulher, uma vez que só lhe tinha espetado uma vareta no ouvido, e não é que fosse coisa de somenos, porque tinha sido uma agressão, sem dúvida, porém não era caso para a empurrar de forma definitiva para o universo dos que não ouvem. Quando muito um tímpano furado, mas ainda tinha outro ou não?

Naquele momento ocorreu-me que seria pouca sorte a minha vareta ter ferido o tímpano de alguém cuja audição já tivesse sido reduzida a metade. Senti-me ainda pior por considerar que eu é que tinha pouca sorte quando feri alguém que já era mal-afortunada o bastante por ter um único ouvido funcional.

Voluntariei-me para chamar o INEM e assim o fiz através do meu telemóvel. A primeira vez que ligava para o célebre número de emergência, experimentei-me como uma caneta nas mãos de uma criança que faz a primeira avaliação escrita. Ao telefone faziam-me demasiadas perguntas e eu sentia que me reprovavam em todas as respostas.

Tinha culpa, uma culpa enorme. A mulher começou a rir mostrando os dentes grandes da frente cariados, cada um deles com uma meia-lua cinzenta, quarto crescente e minguante. Os dois homens perguntavam-lhe algo, mas como estava ao telefone a responder ao extenso e difícil inquérito que me faziam, não percebi o que causou aquela mudança súbita de temperamento.

A mulher ria alto e deitava a língua de fora, mostrava uma máscara bem diferente em apenas uns segundos. «Oh, esta é doida!», disse o homem da gabardine, dirigindo-se em seguida para o navio sem sequer se despedir. O funcionário ainda insistiu com a senhora: «Já ouve bem? Precisa de alguma coisa?»

A mulher respondeu algo que não posso contar no P3 do Público, seria no mínimo impróprio. Virou-lhe as costas também o trabalhador dos barcos. Eu desliguei a chamada do INEM, não sem antes pedir desculpa pelo incómodo. Quis entrar no cacilheiro, afinal não tinha justificação para faltar a uma manhã inteira de trabalho, por maior que fosse a minha vontade naquele momento de espetar uma vareta no ouvido de algum passageiro.

Acenei à mulher que continuava a rir sem razão, ou talvez tivesse uma razão diferente daquela que consideramos apropriada. Assim que me sentei num lugar com vista para a parede amarela do barco — lamentavelmente os lugares à janela já se encontravam preenchidos —, lembrei-me quem me fazia lembrar a senhora do episódio vivido: uma mulher com quem me cruzei à saída da primeira consulta de psiquiatria.

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