A DGPC e a investigação arqueológica
A questão é a de saber que papel deverá ter a DGPC. Trata-se de pergunta tanto mais legítima quanto agora se diz que vai ser reorganizada, na sequência da extinção das Direcções Regionais de Cultura.
Há mais de quatro décadas, quando pela primeira vez foi criado na Cultura um organismo de tutela para o património cultural (o IPPC, Instituto Português do Património Cultural), não existiam cursos superiores de graduação ou pós-graduação em Arqueologia. Não existiam igualmente laboratórios do Estado nesta área ou afins: até o primeiro Laboratório de Carbono 14 português, criado uma década depois, esteve dependente, para demonstração da sua necessidade, do contributo financeiro prestado pelo Museu Nacional de Arqueologia.
Tudo se alterou, entretanto. As universidades oferecem cursos de todos os níveis em Arqueologia e dispõem também de unidades de investigação as mais diversas. Constituiu-se a Fundação para Ciência e Tecnologia (FCT) com os seus centros de investigação associados. E a própria comunidade profissional do sector aumentou exponencialmente, havendo desde museus e empresas, até associações que possuem departamentos próprios, apoiam ou incentivam a investigação.
Atendendo a este novo cenário, pode questionar-se qual o papel do organismo central do Estado na área do património cultural, adendo da Cultura, actualmente a DGPC, na relação com todo esse mundo da investigação arqueológica. E a resposta não é simples, porque deve atender tanto às circunstâncias do passado como aos princípios que desejavelmente deverão modelar o futuro.
Não existe nunca, em nada, e sobremaneira na prossecução do bem comum através dos serviços do Estado, essa coisa de escrever sobre páginas em branco. Nas décadas passadas, por força do acompanhamento do crescimento da arqueologia em Portugal, os serviços da Cultura deram passos importantes, muitas vezes antes que a “velha senhora” que é a Universidade se tivesse começado a mexer sequer. Foi o caso dos estudos em Arqueociências (originados no Museu Nacional de Arqueologia), da chamada “Biblioteca da Arqueologia Portuguesa” e até de linhas editoriais de monografias e revistas periódicas.
Hoje, a DGPC é ainda herdeira de recursos materiais nessas áreas: herbários e osteotecas de referência, uma biblioteca funcional e bem apetrechada (incluindo nela o importante núcleo deixado pelo Instituto Arqueólogo Alemão quando fechou as suas instalações em Portugal). Possui igualmente o chamado “Arquivo da Arqueologia Portuguesa”, recolhido dos seus antecessores, desde o Estado Novo, e desde aí actualizado sempre – um recurso crucial de apoio à gestão patrimonial e à investigação. E, claro, foi constituindo ao longo de décadas um quadro, ainda que residual hoje, de técnicos e investigadores qualificados, que prestaram e prestam um valiosíssimo serviço ao País, muitas vezes nas mais difíceis condições e alicerçados apenas na sua competência, generosidade e sentido de dever público. O que quer que se pense fazer para o futuro deve obrigatoriamente partir deste panorama.
A questão, todavia, é a de saber que papel deverá ter a DGPC. Trata-se de pergunta tanto mais legítima quanto agora se diz que vai ser reorganizada, na sequência da extinção das direcções regionais de Cultura. Ora, se não for para a “engordar”, do que mais se deverá esperar é que seja para a “emagrecer”, fazendo-a concentrar na definição de políticas patrimoniais nacionais, na fiscalização da sua aplicação e eventualmente na adopção do papel de “instância de recurso” em sede de conflito entre interesses antagónicos locais, sobretudo quando os mesmos oponham as CCDR aos cidadãos em geral e especificamente aos grupos de cidadãos organizados em movimento associativo, o que se encontra protegido pela Constituição e pelas leis paraconstituicionais dela derivadas (leis de bases do Património Cultural e do Ambiente, Lei de Acção Popular, etc.).
Temos para nós, sempre tivemos, que o primeiro, mais perene e indeclinável papel da tutela do Património Cultural, na Cultura, em relação à investigação arqueológica é o de contribuir para a promoção do estudo dos bens arqueológicos. O meio mais adequado para o fazer é o Plano Nacional de Trabalhos Arqueológicos, uma ferramenta que remonta à criação do próprio IPPC em 1980, foi infelizmente abandonada durante alguns anos, mas regressou nos últimos e importa ir sempre reforçando, na medida de possibilidades. Por esta via, a Cultura dá um sinal sobre quais as suas prioridades no interface entre investigação fundamental e investigação aplicada ou patrimonial.
E depois? Que lugar, nomeadamente, para os laboratórios de investigação que ainda possui e, de resto, já subsistem em articulação com a área da investigação científica, tendo-se constituído em “laboratórios associados” da rede da FCT ou de centros de investigação de universidades? E que lugar para a biblioteca, de investigação também? Bom, este é o busílis da questão que, antes de ser decidido, importa ver discutido democraticamente, com a participação construtiva de organizações como a Associação dos Arqueólogos Portugueses. No pressuposto da obrigação da DGPC nunca deixar fechar os serviços que possui, deverá ela aliená-los, de forma negociada e responsável? Se sim, dentro da Cultura, retomando por exemplo a lógica secular do Museu Nacional de Arqueologia como centro de investigação (uma dimensão normal e comum a todos os museus nacionais equivalentes, em todo o mundo desenvolvido), especialmente agora que se encontra em vésperas de obra de refundação muito ambiciosa? Ou deverá procurar parceiros mais longe? Fora da Universidade ou dentro dela? E neste caso, como se precaver do sistema feudal de quintas e quintinhas que ainda existe em ambiente universitário?
Como se vê, as perguntas são muitas e os desafios complexos. A notícia recente do encerramento da biblioteca de investigação, sem quaisquer explicações e sem indicação de quando e como reabrirá, apenas as actualizou no espírito de quem segue de perto estes domínios. O sucedido foi lamentável, motivou enorme ansiedade e pode causar dano muito considerável em quem tem trabalhos em curso tanto naquela biblioteca como no arquivo histórico da arqueologia. Mas as dúvidas de fundo são ainda mais perturbadoras. E seria insuportável admitir que, nem técnica, nem politicamente, haja consciência e, por consequência, reflexão estratégica de como lhes dar resposta. Por aqui passam também as tais “reformas estruturais”, que não se sabe bem o que sejam, mas fazem realmente falta. Ora, é pelo menos duvidoso (além de pouco democrático) que a Cultura e a DGPC estejam à altura de as empreender sem ouvir ninguém. Aguardemos, pois.