Todos querem ser nómadas digitais. Eis como o fazer de forma ética

Antes de te vangloriares de como é “barato” viver e trabalhar noutro país, consulta o salário mínimo. As dicas de uma nómada digital — que já passou por Portugal.

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Ansiosos por se libertarem dos seus cubículos, os trabalhadores que podem trabalhar remotamente estão a tentar mudar-se para todo o lado, desde as ruas íngremes de Lisboa às praias de Espanha ou às estâncias de Bali. Durante o período de isolamento da pandemia, o aumento do teletrabalho coincidiu com um desejo crescente de viajar, levando mais pessoas a juntarem-se à comunidade global de nómadas digitais.

Ao mesmo tempo, os países cujas economias foram prejudicadas pela falta de turismo durante a pandemia viraram o seu foco para este novo segmento de visitantes. Vários blogues de viagens orientados para os trabalhadores remotos apresentam uma lista de dezenas de países que implementaram um visto favorável aos nómadas digitais ou anunciaram que estão a desenvolver um.

Sou um dos milhões de pessoas que tiveram o privilégio de abraçar plenamente o estilo de vida de trabalhar a partir de qualquer lugar durante a pandemia. Depois de trabalhar remotamente a partir do Rio de Janeiro durante dois anos, tenho a certeza de que nunca mais voltarei a um escritório.

Este estilo de vida ajudou-me a alcançar uma qualidade de vida que não conseguia encontrar no meu país, mas tem consequências. Em locais como a Cidade do México, Lisboa e Bali, um afluxo de trabalhadores ricos está a pressionar o mercado de habitação a preços acessíveis.

Em Lisboa, alguns habitantes locais acreditam que a presença de nómadas digitais levou a um aumento do número de apartamentos Airbnb em toda a cidade. A plataforma (que comercializa a cidade como um dos melhores locais para trabalhadores remotos) serve sobretudo turistas e nómadas digitais. Os apartamentos têm um preço compatível com esta ideia.

Vejo isso acontecer no Rio, onde os proprietários de Airbnb cobram taxas exorbitantes aos estrangeiros em bairros que já são inacessíveis para a grande maioria dos brasileiros. Enquanto isso, na Cidade do México, taquerías e lojas de conveniência foram substituídas por estúdios de Pilates e espaços de co-working, causando tensão entre os habitantes locais e os estrangeiros. No Verão passado, cartazes espalhados pela cidade chamavam aos trabalhadores remotos uma "praga", segundo o Los Angeles Times.

Apesar das preocupações com a habitação, o México e uma série de outros países continuam a acolher de braços abertos os trabalhadores remotos.

Prithwiraj Choudhury, professor de Harvard que estuda a mobilidade geográfica dos trabalhadores, diz que estes países vêem os nómadas digitais como capital humano com talento que pode estimular a economia. "A preocupação tradicional que as pessoas têm tido contra os migrantes é que eles estão a ocupar os empregos dos habitantes locais. Os nómadas digitais não estão a fazer isso", afirma.

Choudhury acredita que os nómadas digitais têm os meios financeiros e a base de capacidades necessária para causar um impacto duradouro numa comunidade: "A minha sensação é que as pessoas querem de facto ter um impacto positivo. Só precisam de uma pequena ajuda."

Eis algumas coisas que podemos fazer para deixar as nossas casas temporárias melhores do que as encontrámos.

Retribuir à comunidade

Estudos retratam os nómadas digitais como profissionais com conhecimentos tecnológicos que trabalham por conta própria ou têm um emprego de escritório. Quando entramos numa comunidade a partir de uma posição de privilégio, é nossa responsabilidade encontrar formas de retribuir.

Isto pode ajudar-te a perceber qual é a tua situação financeira em relação ao resto da população. Antes de te vangloriares de como é "barato" viver e trabalhar noutro país, consulta o salário mínimo. Em Bali, um dos centros mais populares para os nómadas digitais, é menos de 200 euros por mês. É possível que a maioria dos habitantes locais não possa pagar os mesmos luxos do que tu, com o teu salário de trabalho remoto.

Podemos usar o nosso privilégio para retribuir às nossas comunidades de acolhimento de várias formas:

  • Inscrevermo-nos numa escola de línguas é um óptimo primeiro passo. O professor pode ajudar-te a conhecer outros habitantes locais e a pôr-te em contacto com grupos de voluntariado.
  • Escolher uma causa local e dedicar-lhe tempo e dinheiro durante a estada.
  • Ficar cliente fiel do comércio local, não do tipo que serve os nómadas, mas do que constitui o tecido dessa comunidad.;
  • Quando for apropriado, dar uma gorjeta generosa ao empregado de mesa, ao guia turístico ou ao cabeleireiro.
  • Partilhar o talento com a comunidade. Consegues organizar um workshop sobre um tema em que és especialista? Estás disposto a praticar inglês com estudantes locais?

Pedir o visto de nómada digital para ficar mais tempo

Os nómadas digitais infringem muitas vezes a lei sem o saberem. Quando se entra num país como turista, está-se normalmente impedido de trabalhar durante a estadia, mesmo que se trabalhe por conta própria ou para uma empresa fora do país.

"A maioria dos governos não se importa de fazer vista grossa", diz Meghan Benton, directora do programa internacional do Migration Policy Institute, explicando que a maioria dos países encara a presença de trabalhadores remotos como algo positivo.

Desde que a Estónia introduziu o primeiro visto de "nómada digital", em 2020, mais países têm vindo a tornar claras as regras em torno do trabalho remoto por períodos prolongados, facilitando a ligação dos viajantes à comunidade local.

A maioria destes vistos não exige que os nómadas paguem impostos no país de acolhimento, o que significa que cabe ao viajante retribuir à comunidade de outras formas. No entanto, quando se começa a criar raízes, o potencial de impacto positivo aumenta. Aprende-se a língua, desenvolvem-se relações duradouras e tem-se mais tempo para retribuir à comunidade.

"Alguns dos programas de vistos mais sofisticados estão agora a pensar na transição para estadas mais permanentes", diz Benton. "Estão a pensar: 'Como é que o usamos para tentar agarrar futuros residentes e cidadãos de longa duração?'"

Apoiar empresas fora da “bolha nómada”

Porque estamos a viver e a trabalhar num país sem pagar impostos locais, o mínimo que podemos fazer é apoiar as empresas locais.

Porém, muitas vezes, tendemos a gravitar em torno das comunidades de expatriados já estabelecidas, onde podemos encontrar caras conhecidas, comida, cafés e espaços de co-working. Embora seja óptimo para estabelecer contactos, torna-se mais difícil estabelecer contactos com os habitantes locais quando se está dentro da bolha nómada.

Geena Truman, que viaja a tempo inteiro há mais de três anos, admite que a integração com a cultura local requer algum esforço: “Acho que é o que todos queremos, mas é muito fácil deixarmo-nos levar pelo que é conveniente.”

Contudo, viu as consequências em primeira mão. Quando visitou Bali em 2017 e, depois, em 2019, teve a certeza de que certas áreas da ilha se tinham diluído para parecer “qualquer cidade do mundo”. Muitas empresas familiares fecharam e, no seu lugar, apareceram estabelecimentos feitos a pensar no Instagram e nos nómadas digitais.

“É muito importante reconhecer o poder que temos quando decidimos como gastar o nosso dinheiro”, afirma Tarek Kholoussy, fundador da Nomads Giving Back, uma organização que liga os nómadas a habitantes locais através de eventos ou oportunidades de voluntariado em Bali, Buenos Aires e Medellín.

Kholoussy defende que não há nada de mal em querer visitar o café mais instagramável na cidade. Mas se aumentares o tempo e o dinheiro gasto em locais menos turísticos, podes ter um impacto maior.

“Viajar é sobre ter novas experiências e sair da zona de conforto”, disse Truman. “Não viajaríamos até ao outro lado do mundo se quiséssemos ter exactamente as mesmas coisas que temos em casa.”

Atenção a onde ficas alojado (e quanto pagas)

Uma forma de mitigar o impacto nos custos de habitação é arrendar directamente a um habitante local, em vez de usar o Airbnb. Em lugares como a Cidade do México, Buenos Aires e Lisboa, o chamado efeito Airbnb pode fazer diminuir a oferta de habitação a longo prazo enquanto aumenta o valor de uma zona, empurrando os habitantes locais para fora das cidades.

“Uma grande parte dos custos de habitação são causados pelas pessoas que querem viver exactamente no mesmo sítio que todos os outros estrangeiros”, afirma Kholoussy.

Antes de acordares uma renda a longo prazo, certifica-te que o valor está alinhado com a média para aquele bairro. Uma pesquisa na internet pode dar-te uma ideia dos custos na área que pretendes. Ficar dentro desse intervalo pode ajudar a evitar que a renda suba também para os teus vizinhos.

Para estadas mais curtas, o Airbnb é, normalmente, a opção mais conveniente. Mas podes tentar procurar alternativas nos sites de imobiliárias locais ou em grupos de Facebook dirigidos a nómadas digitais. Também podes procurar por descontos para estadias mais longas em hostels e hotéis, como acontece no Rio.

E também há a forma antiga de encontrar casa: perguntar. Tanto os habitantes locais quanto os imigrantes são recursos óptimos para encontrar casas que não estão a ser publicitadas a estrangeiros.

Integra-te com os locais — e partilha as tuas capacidades

Fazer voluntariado numa organização local é uma forma nobre de retribuir à comunidade, mas não é a única forma.

Os trabalhadores remotos têm competências digitais valiosas. Somos uma mistura de “solopreneurs” (ou empresários a solo), escritores, fazemos desenvolvimento de sites, somos marketeers e mais.

Gonçalo Hall, presidente executivo da NomadX, dá aos nómadas uma forma de partilhar essas competências com os habitantes locais numa vila nómada da Madeira, Portugal. Uma das formas para colmatar o fosso entre nómadas que chegam e a comunidade que já lá estava é através de workshops de partilha de competências. Durante a pandemia, Hall pediu a alguns especialistas em cripto moedas que fizessem um workshop sobre NFT e 80% da turma era composta por artistas locais.

Quando chegares a um sítio novo, procura por organizações como a de Hall ou a Nomads Giving Back para encontrar formas de ajudar a comunidade com as tuas capacidades.

Se a língua for uma barreira, inscreveres-te num curso é uma boa forma de conhecer outros visitantes e comunicar melhor com os habitantes locais. Dar prioridade a restaurantes locais, cafés e bares pode levar-te longe. Também te podes juntar a um clube desportivo local. Aqui no Rio, vários nómadas ficam a conhecer os cariocas através de aulas de surf ou futevólei na praia.

Vai nas épocas baixas

Para ajudar a combater o turismo excessivo, viaja para o teu destino durante as épocas baixas, especialmente se entrares com um visto de turista. Isto minimiza a pressão nos recursos locais e no ambiente durante as épocas de pico.

As viagens em época baixa também são mais acessíveis. Encontras bilhetes de avião mais baratos e preços mais baixos em alojamento e actividades, o que torna mais fácil explorar o teu destino. E também vai haver menos multidões de outros turistas, o que te dá espaço para interagir com os habitantes locais.

Enquanto nómadas digitais, as nossas casas actuais podem ser temporárias. Mas é importante lembrar que são casas permanentes para a maioria das pessoas que nos rodeiam. Quanto mais pessoas se fizerem à estrada, maior vai ser o nosso impacto. A boa notícia é que pode ser positivo.


Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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