Bienal de Fotografia do Porto acusa Misericórdia de “acto de censura”
Direcção da bienal e equipa da exposição Vento (A)mar pedem reabertura da sala que o Centro Hospitalar Conde de Ferreira mandou selar para esconder obra que critica esclavagismo do patrono.
Os autores e a curadora da exposição Vento (A)mar e os directores da Bienal’23 Fotografia do Porto – Actos de Empatia, em cujo âmbito a mostra foi inaugurada, na passada sexta-feira, no Centro Hospitalar do Conde de Ferreira (CHCF), consideram que o encerramento forçado da sala onde estava instalada uma obra alusiva ao passado esclavagista do patrono do hospital é um “acto de censura à liberdade de expressão”, e solicitam, pois, ao CHCF e à sua tutela, a Misericórdia do Porto, que reabram o espaço e permitam ao público “uma visão completa” da criação artística de Dori Nigro e Paulo Pinto.
A dupla de artistas, a curadora Georgia Quintas e os directores artísticos da bienal, Virgílio Ferreira e Jayne Dyer, defendem, num comunicado enviado à imprensa, que o encerramento da sala – ordenado pelo administrador executivo do CHCF, Ângelo Duarte, em plena inauguração da exposição – “fere um direito constitucional inalienável e atinge não só o conjunto da obra artística Adoçar a Alma para o Inferno III, como toda a equipa da exposição e da Bienal, toda a classe artística e todos/as aqueles/as que defendem a democracia”.
Justificando a decisão de mandar fechar a sala onde se encontra a instalação que lembra o lucrativo comércio de escravos a que se dedicou o Conde de Ferreira – calcula-se que tenha transportado dez mil pessoas escravizadas de Angola para as vender no Brasil aos proprietários dos engenhos de açúcar –, a Misericórdia enviou ao PÚBLICO, na sexta-feira, um comunicado onde assegura que Virgílio Ferreira e os artistas “foram sensíveis aos argumentos apresentados, particularmente naquele contexto hospitalar, e ao potencial desconforto que tal poderia gerar na comunidade daquela que é a casa de muitos doentes”.
Uma afirmação que os visados vêm agora desmentir. “Reiteramos que de modo algum fomos ‘sensíveis aos argumentos apresentados’ pelos representantes do CHCF, e que nos sentimos visivelmente desconfortáveis diante da condição imposta de encerramento da sala ou retirada da obra”, lê-se no comunicado conjunto dos artistas e da bienal, no qual se lembra ainda que “este acto de censura aconteceu diante do público que estava a circular pelo espaço expositivo, tornando a acção ainda mais invasiva”.
É também contrariado o motivo apresentado pela Misericórdia do Porto para ter encerrado a sala: “ter-se constatado que um dos espaços expositivos continha ‘peças de arte’ com referência ao passado esclavagista do Conde de Ferreira, componente não apresentada na proposta preliminar da exposição.”
A obra censurada já estava na cela 7 do Panóptico do hospital desde o dia 16, terça-feira, e a montagem da exposição foi “acompanhada directamente por funcionários e membros da administração do CHCF”, garante a nota da bienal, acrescentando que o protocolo firmado entre a plataforma que organiza a bienal – a Ci.CLO – e a Misericórdia do Porto incluía “uma sinopse do projecto” na qual estava já presente “a dimensão da investigação sobre a história colonial”, ainda que sem referência expressa ao passado esclavagista do Conde de Ferreira.
Sublinhando que a intenção da Ci.CLO é “desafiar as pessoas a repensarem a sua relação com o mundo através das artes visuais para activar mudanças sociais e ecológicas regeneradoras", e que o próprio título da bienal – Actos de Empatia – sugere o desejo de “impulsionar mudanças por meio de actos artísticos que promovam relações saudáveis entre indivíduos e grupos”, as equipas da bienal e da exposição propõem-se realizar “um dia de debate aberto” sobre “a figura controversa” do Conde de Ferreira e “os impactos do colonialismo e da censura na liberdade de expressão”.
Contactada pelo PÚBLICO, a Santa Casa da Misericórdia do Porto fez apenas saber que "nada tem a acrescentar à sua posição inicial, não pretendendo alimentar qualquer tipo de polémica.”
Se a Misericórdia e o Centro Hospitalar do Conde de Ferreira não reverterem a decisão tomada na sexta-feira, ou enquanto não o fizerem, a exposição deverá continuar aberta até ao próximo dia 1 de Julho, mas os visitantes irão deparar-se com uma sala cuja porta foi selada com uma tábua e parafusos, numa espécie de exposição da própria censura.