Quase todas as madrugadas, a padeira Lurdes Resende, com meio século de trabalho na arte de cozer padas e regueifas de Ul, põe as mãos na massa e passa a noite à volta dos fornos de lenha. Aos 69 anos, é uma das mestras desta arte, numa rotina “dura”, que não “faz ninguém rico, mas que permite sustentar a vida”, conta-nos. Mas se é apaixonada pelo que faz, por estes dias ainda tem mais alegrias.
Lurdes Resende é uma das estrelas do tradicional Mercado à Moda Antiga, que, este sábado e domingo, leva milhares a Oliveira de Azeméis para reviverem as artes e saberes de outros tempos, com recriações centenárias à medida, num evento particularmente desejado no concelho, visto que não se realizava desde 2019. Uma “homenagem aos antepassados”, que viaja pelos últimos dois séculos, ainda mais importante para Lurdes Resende, que herdou esta "paixão” pelas padas da mãe e da avó.
O Mercado à Moda Antiga, uma verdadeira cápsula do tempo concentrada em quatro hectares da cidade, entre os correios e o teatro, estende-se por toda a rua pedonal, e, neste palco, as estrelas são os representantes de 70 associações e artesãos. Replicam-se aqui, ao pormenor, os quotidianos de eras passadas.
Barbeiros afiam as navalhas, cozinheiros voltam-se para o forno a lenha e a panela de ferro, as padeiras põem as mãos na massa e fazem-se ao fogo em pleno centro da cidade, enquanto os ranchos folclóricos dão o ritmo aos séculos.
E não faltará outro ex-líbris da gastronomia oliveirense: as papas de São Miguel, receita de séculos eternizada pela confraria fundada pelo chef Lindolfo Ribeiro. Contemporâneas das padas, as papas e as suas “voltas” são metáfora do fim-de-semana festivo.
“No Mercado à Moda Antiga recuperamos essa cozinha lenta e tradicional”, diz à Fugas. “Há associações que confeccionam os rojões no braseiro e refogam lentamente a banha em tachos de cobre. Hoje é tudo muito apressado pela tecnologia e pelo pouco tempo que as pessoas têm para estar na cozinha”, explica Lindolfo Ribeiro, como que sublinhando que este mercado é o espaço ideal para aprender a saborear o que nasce da calma.
Trajes arejados, sapatos engraxados, fornos de lenha e panelas de ferro bem aquecidos, e tudo a postos para (re)viver o passado.
Padas, regueifas e o engenho de Ul
Depois de mais uma longa noite de trabalho, Lurdes Resende, mestre e quase caso único na confecção das padas e regueifas de Ul, cozidas em exclusivo na freguesia vizinha da sede de concelho, está, como sempre, de porta aberta e, por volta do meio-dia, já pode descansar, enquanto conversa com a Fugas sobre esta vida dedicada à tradição familiar que celebra quase todas as madrugadas e, em particular, neste fim-de-semana.
Os cantares, os trajes e a envolvência do festivo certame permitem à "dona Lurdes", como é conhecida em Ul, recuar aos dias em que observava a mãe e a avó a transportarem lenha do monte, a cozerem a massa no forno e a venderem as padas com as canastras na cabeça. Uma rotina replicada pela vizinhança, quando na freguesia predominavam os moleiros e as padeiras.
"A minha avó vestia uma saia travada, uma blusa simples, um avental e usava um lenço na cabeça”, lembra. “Eu, se vendesse pão de canastra à cabeça e tivesse de trazer lenha do monte, certamente não seria padeira", esclarece, entre risos.
A confecção das padas e regueifas foi aprimorada depois de os muitos moinhos junto ao rio Ul (desde 2009, Parque Temático Molinológico, por onde corre também o rio Antuã) serem substituídos pela produção caseira. Foi o que aconteceu com a família de Lurdes: a cozinha da avó, nascida nos princípios do século XX, foi aumentada e foram adicionados dois enormes fornos a lenha.
Embora com alguns auxiliares modernos, o processo permanece “maioritariamente manual”, descreve a padeira, exemplificando o detalhe de “sobrepor dois bolos” para formar a pada. “Hoje, produzimos um pouco mais porque temos duas máquinas, a amassadeira, que forma uma bola de massa fofa que dá para 30 bolos, ou seja, 15 padas, e o cortante. No fim, transportamos as padas e regueifas em carrinhas.”
A noite de trabalho de Lurdes Resende exige apenas três ingredientes para a receita das padas: farinha sem aditivos, água e sal. A diferença, revela, está no “lar”, ou seja, na base do forno: “A lenha arde dentro do lar, que é de barro. Depois de limpa a base, o forno está quentinho e a temperatura confere a textura característica das padas, ao fim de meia hora.”
Quanto às regueifas, é adicionada canela na massa e o topo é “pintado” com ovo, resultando num sabor, textura e aspecto distintos. Apesar da combinação “famosa e atractiva” da regueifa de Ul com açúcar no topo, a padeira desfaz qualquer dúvida: “a regueifa de Ul tradicional” dispensa o adoçante.
Entre massa envolvida, amassada, cortada, com bolos unidos em padas, e ao fim de quatro fornadas, distribuídas a partir das seis da manhã, Lurdes Resende conta com a ajuda de familiares para sustentar o negócio.
Durante o Mercado à Moda Antiga, as padeiras de Ul vão estar munidas de, apenas, dois fornos a lenha e, como manda a tradição, vão partilhar o engenho junto à Câmara Municipal. Nessa praça, é certo e sabido que os aromas das padas e regueifas vão fundir-se com o aroma característico das papas de São Miguel.
A lição da cozinha lenta, entre as “voltas” das papas e do rancho
O Mercado à Moda Antiga, pela primeira vez celebrado em 1997, espelha a etnografia de Oliveira de Azeméis. Um evento cujos alicerces se devem à recuperação histórica desenvolvida na segunda metade do século XX por Isabel Maria Calejo, figura tutelar das tradições do concelho.
Nascida em Coimbra em 1922, morreu há quase quatro anos, no lugar de Cidacos, na quinta onde se dedicou a investigar o passado de Oliveira de Azeméis. Essa quinta serviu também de sede ao Grupo Folclórico de Cidacos, que se organizou e estreou em Agosto de 1960. Os trajes usados, do período compreendido entre 1890 e 1910, foram bordados por Isabel Maria Calejo, que validou os pormenores com os idosos e com recurso a registos fotográficos.
Nos eventos organizados na casa de Isabel Maria Calejo, localizada a menos de um quilómetro do centro da cidade, as papas de São Miguel e as padas de Ul eram indispensáveis à mesa. E foi assim que a Quinta de Cidacos se tornou o epicentro da etnografia oliveirense, como recordou o presidente do grupo folclórico, António Resende. Sobre a data concreta para a criação das receitas, alguns registos apontam para o século XIX, acrescentou.
Foi num desses encontros na Quinta de Cidacos que o chef Lindolfo Ribeiro, nascido há 74 anos na freguesia de Cesar, provou pela primeira vez as já famosas papas baptizadas com o nome do padroeiro de Oliveira de Azeméis. Conta a história que a receita centenária, recuperada por Isabel Maria Calejo, foi determinante para alimentar as gentes da então vila entre 1914 e 1918, enquanto decorria a Primeira Guerra Mundial.
Além disso, descreve à Fugas o chef Lindolfo, em Setembro, mês de colheitas e de celebração de São Miguel, os caseiros entregavam parte das colheitas aos senhorios e festejavam com as papas, confeccionadas com o milho novo, nabiças, feijão branco, carne dos ossos da suã (da espinha do porco), vinha d’alho e couratos.
Foi pela base etnográfica, e para que as “atitudes de gratidão e o convívio não se percam”, que o chef aceitou, a convite de Isabel, fundar, em 2007, a Confraria das Papas de São Miguel, que hoje conta com 60 confrades, entre os 21 e os 74 anos.
E onde está o “segredo” destas papas? Lindolfo Ribeiro explica que as papas oliveirenses se diferenciam pelas “voltas”, ou seja, pela confecção de “cozinha lenta”, de panela de ferro ao lume. Por isso, destaca, uma vez que a peça de louça é de ferro fundido, os poros interiores deverão ser limpos com várias cozeduras de água, a fim de expulsar as toxinas.
“Os antigos colocavam a panela ao lume com água a ferver com hortaliças, cascas de cenoura e de batata durante três horas, e jogavam fora. Só à terceira cozedura é que acrescentavam banha de porco, azeite, legumes e farinha. Se a água estiver limpa, significa que pode ser usada, os poros estão limpos e a panela cozida para a vida.”
Feita a ressalva, o chanceler-mor da confraria abre o apetite com as “voltas” das papas: antes da confecção, os ossos da suã devem ser mergulhados numa calda de vinho tinto, sal e alho, “quantas mais horas melhor para conferir um sabor característico”, depois aliado ao paladar “apurado” e exclusivo da panela de ferro.
O mestre recita as "voltas" com a calma de quem sabe de cor os passos desta criação. No correr tranquilo dos minutos, prossegue, os ossos da suã vão pedir para que a carne seja separada, depois de “extraídos importantes nutrientes para a água, como o cálcio”.
Daí não admirar que Lindolfo Ribeiro enalteça as papas de São Miguel como um “produto gastronómico rico”, que, servido em malgas, é apreciado por miúdos e graúdos. Como defendia Isabel Maria Calejo, a iguaria deve ser acompanhada pelas padas de Ul.
De emoção e legado também se faz o mercado
Entre recriações da vida e tradições com mais de um século, a animação folclórica está também garantida. E todos esses vectores voltam a convergir para o trabalho da “dona Isabel”.
Falecida em Agosto de 2019, Isabel Maria Calejo, dedicou a sua vida a valorizar a história cultural de Oliveira de Azeméis e, palavras do presidente do Grupo Folclórico de Cidacos, partiu “orgulhosa”.
“No primeiro ano, em 1997, a dona Isabel ajudou a preparar um desfile etnográfico. Recordo-me da emoção em recuar um século e trajar a rigor. Muitas vezes a vontade de fazer cumprir a tradição gerava zangas, face à sua personalidade forte”, lembrou. “Mas, quando chegava a casa, depois do sábado de festa, o dia mais extenuante”, sublinha António Resende, "a dona Isabel estendia as pernas na sala e as lágrimas de alegria caíam.” Por estes dias, quase apostamos, também não faltará uma lágrima ou outra de saudades, e de alegria, pelos caminhos do tempo do Mercado à Moda Antiga.