Os bastidores da ascensão de um ditador por Albano Jerónimo e Cláudia Lucas Chéu
O Meu Amigo H. inspira-se no texto do controverso autor japonês Yukio Mishima. A estreia é esta sexta-feira em Guimarães, no Centro Cultural Vila Flor, às 21h30.
O político aproxima-se do microfone, o discurso inflama-se, o aplauso apoteótico emerge. Mas, para lá da cortina, nos bastidores, inverte-se o sentido, e o lugar é tomado pela traição, pela pequena intriga, pela disputa invisível pelo poder. É neste emaranhado que se move O Meu Amigo H., a nova peça da companhia Teatro Nacional 21, encenada por Cláudia Lucas Chéu e Albano Jerónimo, em estreia absoluta esta sexta-feira no Centro Cultural Vila Flor (CCVF), em Guimarães, às 21h30.
O ponto de partida é My Friend Hitler, texto publicado em 1968 pelo controverso Yukio Mishima, e que aborda a relação do ditador alemão com três figuras próximas: o capitalista Gustav Krupp, o sindicalista Gregor Strasser, e o militar Ernst Röhm. O destino dos dois últimos desembocou no assassinato, ordenado por Hitler na purga que ficou conhecida como Noite das Facas Longas, ocorrida em 1934.
O drama move-se entre quatro personagens que cultivam o arquétipo da masculinidade, a sede do poder e, no limite, a intolerância. Um caldo de “individualidade exacerbada”, num pano de fundo de “decapagem de valores”, que, quase um século mais tarde, ecoa nos púlpitos e nas sombras dos novos populismos. “O timing deste texto não podia ser mais pertinente, pela conjuntura nacional e internacional. Vivemos tempos extremados”, comenta Albano Jerónimo.
O fascínio do autor japonês, nacionalista convicto, por Hitler – “um génio político”, assim o chegou a designar – manifesta-se aqui “na sua plenitude”, “desde a ideia de adoração, até a uma perspectiva homoerótica”. Mas o génio para Mishima é o “monstro” para Albano, Cláudia, e Ricardo Braun, que assina a dramaturgia. “O Mishima, sendo um autor controverso, anguloso, esquinado, não convencional, é sempre permeável a uma abordagem artística, seja ela de que raiz for.” Hitler dá lugar a H., interpretado por Rodrigo Tomás. O capitalista é Virgílio Castelo, o sindicalista é Pedro Lacerda, o militar é Ruben Gomes.
Em palco, o cenário acomoda três câmaras de filmar, que transmitem num ecrã os discursos e o deambular dos personagens. A peça inicia-se com a ida de H. ao púlpito, de costas para o público, mas de face visível no ecrã. A transmissão lembra os planos da cineasta Leni Riefenstahl, o discurso evoca a vivacidade da prosódia de Hitler. É o “esqueleto da ascensão de um ditador”, diz Albano, um ditador que bem “podia ser André Ventura”, complementa Rodrigo Tomás. As expressões “pessoas de bem”, “Deus confiou-me este gabinete” ou “não podemos deixar destruir a nossa economia nacional” são parte do monólogo inicial.
A peça exclui qualquer nome do título para “ampliar o discurso” e descodificar o que assoma diante de todos. “Por norma, o discurso político que vemos na televisão carece de uma perspectiva humana. Mas onde é que fica o indivíduo? Não fica, reside todo numa espécie de metaverso, uma estratosfera à qual não acedemos”, explica Albano Jerónimo.
As interacções entre quem está no poder e quem o rodeia, a diluição entre a vida pública e a vida privada, e o modo como a pequena política, de bastidores, surge na peça são o “fumo que faz disparar o alarme”. “Vem com essa energia: uma espécie de aviso”, sintetiza o encenador.
Tudo à vista
A contracena instala-se entre o espaço físico e a projecção no ecrã. Os actores estão muitas vezes de costas e cruza-se o cenário com música e vídeo, algo que não é inédito em criações de Cláudia Lucas Chéu. A mescla entre o plano geral captado pelo espectador e o grande plano oferecido pela projecção assume-se como “um novo ponto de vista e mais uma camada de aproveitamento estético”, diz Pedro Lacerda.
Os bastidores imiscuem-se na abordagem cénica. “Aqui o pormenor, por vezes, é muito mais importante do que o resto, de tal maneira que pomos a maquina toda à mostra”, acrescenta o actor. Enquanto a trama se desenrola, vê-se toda a equipa técnica: João Pedro Fonseca, responsável pelo vídeo, entra em cena para ajustar as câmaras, e Inês Cardoso (Carincur), do som, infiltra-se nos planos projectados.
O espectáculo quer alertar para “a anestesia perante a violência”, para os “pequenos mecanismos de violência que já vamos assumindo com normalidade”, avança Albano Jerónimo. Mas também quer convocar o público a ligar-se a quem está em cena. “Gostava que se estabelecesse um pacto de ficção e que o público fosse sensível ao trabalho não só dos actores mas de toda a equipa artística: estamos todos visíveis, ninguém esconde nada.”