Portugal já tem vinho regenerativo certificado
Agora que a sustentabilidade é um conceito que faz parte do nosso dia-a-dia, aqui está um vinho cujo modo de produção assenta em dois princípios básicos: regenerar os solos e respeitar a natureza.
Protecção integrada, produção biológica, método biodinâmico ou permacultura, eis os conceitos que nasceram para fazer face à agricultura convencional. Como se já não fossem suficientes, temos agora outro para acrescentar à lista: a agricultura regenerativa. A dada altura, poder-se-á pensar tudo isso são estratégias de marketing concebidas numa universidade qualquer da Dinamarca ou da Nova Zelândia e depois alavancadas por um think tank americano com olho para o negócio, mas o princípio da agricultura regenerativa é racional, fácil de entender e não requer do consumidor uma abertura considerável para questões de fé.
Para a componente vegetal, pode resumir-se assim: se um solo – tudo começa e acaba aqui – é naturalmente rico em matéria orgânica, as plantas que nele vivem serão saudáveis; se as plantas estão saudáveis, o agricultor não tem necessidade de fazer correcções químicas aos solos, nem tem de utilizar fungicidas, pesticidas ou herbicidas. As plantas conseguem defender-se melhor. Ao trabalhar desta forma, um agricultor transforma-se num protector do ambiente, num gestor de ecossistemas e num agente promotor de saúde pública, visto que produz alimentos com maior densidade nutricional e maior segurança alimentar.
O enquadramento histórico, a apresentação de casos práticos em Portugal e a explicação em detalhe dos princípios da agricultura regenerativa será algo para um trabalho em breve no PÚBLICO – coisa conveniente, face a notícias recentes sobre certas modas que nos parecem mais turísticas do que regenerativas –, mas hoje importa dar notícia do lançamento do Família Nicolau Regenerativo 2021, o primeiro vinho certificado (IG Lisboa) de um viticultor que só trabalha segundo os métodos da agricultura regenerativa, num ambiente que envolve toda a família alargada.
“Alguma coisa estava errada”
Sérgio Nicolau é filho, neto e bisneto de agricultores da região de Torres Vedras. Entre várias culturas, a família produzia uva que seguia para uma cooperativa local. Como esta, durante décadas, pagava em função da quantidade, o modo de produção passou por aplicar fertilizantes (azoto, fósforo e potássio), fungicidas, pesticidas e herbicidas pela medida grossa.
“A dada altura comecei a perceber que a água dos poços não só era mais escassa como de pior qualidade, que as aves, mamíferos, répteis e insectos desapareciam e que os solos estavam com cada vez menos matéria orgânica e pior estrutura, o que tinha como consequência a erosão, a lixiviação dos nutrientes e – o mais absurdo – uma cada vez maior dependência de inputs externos e aumento de custos”, diz-nos o agricultor, que resume a tese assim: “Quanto mais produtos químicos e de síntese usava no solo e na vinha, maiores problemas tinha, mais dinheiro gastava e mais impacto ambiental provocava. Portanto, alguma coisa estava errada.”
Em 2017, Sérgio recebeu do pai 10 hectares de vinha. Em 2018 iniciou a reconversão para modo biológico e, em 2019, acrescenta o sistema de agricultura regenerativa. Porquê? “Porque me apercebi de que, apesar de o modo de produção biológico não aplicar produtos de síntese, não só usava outros químicos como não tinha a preocupação com o uso correcto dos solos. Em agricultura regenerativa, tudo começa na vida do solo. Só um solo equilibrado pode alimentar correctamente uma planta. E tudo o que tenho feito desde então é procurar esse equilíbrio.”
Como? “Com a mobilização mínima do solo, com a manutenção permanente de coberto vegetal, com análises regulares à seiva das plantas e com aplicação, quando se justifica, de macro ou micronutrientes naturais.” O solo está hoje equilibrado? “Ainda não, porque isso demora tempo, mas há algo que já posso demonstrar: Quando comecei a trabalhar em regenerativo, há quatro anos, os solos tinham entre 0,5 a 0,7 por cento de matéria orgânica. Hoje têm 1,7 por cento. E o meu objectivo é continuar a aumentar a matéria orgânica.”
A existência de matéria orgânica não tem apenas a função de alimentar correctamente a planta. Em si mesmos, o carbono e o azoto são elementos estratégicos de gestão da água nos solos. Numa terra nua – como se vê por todo lado –, quando a chuva cai ela acaba, a dada altura, por escorrer e ir para parar aos rios em correntes lamacentas. Em terra com coberto vegetal, com raízes e com vida, a chuva é retida e infiltrada. “Sabemos hoje que o aumento de 1 por cento de matéria orgânica consegue reter entre 180 e 200 mil litros de água a mais por hectare”, diz-nos Sérgio.
Todo o processo produtivo usado nesta propriedade em Ventosa socorre-se de análises constantes e variadas aos solos, à seiva das plantas (sete vezes por ano), aos açúcares disponíveis das folhas e às imagens de satélite, “tudo isso para que as plantas tenham a nutrição, a capacidade imunitária e a taxa fotossintética perfeitas”.
Por exemplo, o combate a certas pragas de insectos parece uma brincadeira elementar. Segundo o viticultor, “a maioria dos insectos só ataca as plantas se o nível de açúcares simples estiver alto. Se estes açúcares forem complexos, tornam-se indigeríveis pelos insectos, pelo que se afastam da vinha. Assim, se se conseguir modificar o perfil nutricional das vinhas, diminuindo o teor de nitratos solúveis e melhorando a síntese proteica com nutrientes como magnésio, enxofre e molibdénio, os insectos deixam de se interessar pelas folhas das plantas”.
O regresso das minhocas à terra
Sérgio fundou com três amigos (Francisco Alves, da Herdade de São Luís, João Valente, do Monte Silveira, e Francisco Teles, investigador na Alemanha em agricultura regenerativa e olivicultor no Alentejo) a associação Orgo, que tem por objectivo promover os princípios da agricultura regenerativa. Quem os quer ver felizes é, em grande algazarra, à volta de uma mesa, onde tanto pode estar um tacho de grão-de-bico com borrego (tudo produzido por eles em modo regenerativo, claro) como uma pilha de livros importados, relatórios científicos e um microscópio para observar um pedaço de solo ou uma folha.
Quando se fartam de discutir, levantam-se e, por exemplo – isso já nós vimos –, vão espreitar uns compostos de micronutrientes que Sérgio costuma preparar num biocombustor a partir de vísceras de peixes que vai buscar ao Mercado de Torres Vedras. Sim, parecem nerds da agricultura regenerativa, mas suportados pela ciência e pela evidência.
Não escondem que este modo de produção implica riscos, tempo de recuperação dos solos e algumas perdas de produção face à agricultura convencional, mas também demonstram ao detalhe que estão a produzir alimentos com uma densidade nutricional superior, estão a proteger o ambiente e estão a tornar as culturas mais resilientes face às alterações climáticas. E, ironicamente, a ganhar mais dinheiro, porque estes produtos têm um valor de mercado superior em determinados nichos. Já esteve bem mais longe o tempo em que o consumidor vai conhecer, no momento da compra, a densidade nutricional comparada de um bem alimentar.
Claro que, no caso do Sérgio Nicolau, enquanto produtor de vinho, ele não espera que comprem o seu vinho por causa do valor da densidade nutricional das suas uvas – embora seja muito melhor beber um vinho sem resíduos do que o contrário –, mas espera que reconheçam o esforço que ele e a família fazem na recuperação dos solos, na melhoria dos lençóis freáticos e na promoção da biodiversidade. “Ver o meu pai, que quase sempre fez agricultura convencional, a observar a mudança de cor do solo (está hoje mais escuro) e a comentar o regresso das minhocas à terra é algo que me deixa feliz. A mim e à família toda, porque isto é feito por todos e para todos”, remata o agricultor.
Nome Família Nicolau – Regenerativo 2021
Produtor Família Nicolau
Castas Viosinho, Arinto, Alvarinho e Fernão Pires
Região Lisboa
Grau alcoólico 13
Preço (euros) 17
Pontuação 94
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Do ponto de vista aromático sentimos a predominância da casta Arinto, com os cítricos da praxe, mas à mistura com curiosas notas minerais e vegetais, até de algas. Na boca é notoriamente espevitado, com acidez bem marcada e, em consequência, a indicar grande potencial de evolução. É vinho que pede pratos de assados, de peixe ou de carne, tanto faz.