Médicos no parto: “enquanto uns não valorizam, outros imploram para ter”
Sabem quem sabe mais sobre o momento do parto? São os médicos obstetras. E agora querem retirar os médicos obstetras do parto.
Li esta frase algures escrita, com o poder que só um graffiti pode ter, quando escrito numa parede qualquer. Não imaginam as emoções que isto me desperta depois de ter vivido em alguns dos países mais pobres do mundo. Esta frase é verdade para múltiplas dimensões, mas o meu pensar médico afunila nesta área de saberes que salva vidas. Demoramos décadas para chegar até p. e. à criação da Aspirina, de um antibiótico, ou de uma vacina, para depois vir um perfeito idiota qualquer dizer que é com “produtos naturais” que se salvam vidas, e que os médicos são serial killers.
Qualquer idiota põe a ciência em causa, qualquer idiota põe a medicina em causa, e depois juntam-se, organizam-se, para contaminar e intoxicar a cabeça das pessoas que na sua inocência vão atrás destas patetices. Mas são patetices que matam.
Há uma área em que a imbecilização da opinião pública, intoxicada pelas terapias não cientificamente provadas e pseudociência, me preocupa em particular, que é a da medicina obstétrica, especificamente, o momento do parto. Estou longe de estar qualificado como obstetra, mas enquanto anestesista no hospital com mais partos do país vi e participei em centenas de partos eutócicos, cesarianas e complicações graves que afectam a mulher e o recém-nascido. Enquanto intensivista, já tratei uma boa dose de puérperas nas UCI e, enquanto anestesista em missões humanitárias do Congo ao Afeganistão, já sofri dezenas de mortes de mulheres nas minhas mãos. Nas minhas mãos! E recém-nascidos mortos, deixamos de contar muito rapidamente. As minhas palavras são duras, quase cruéis, porque assim é a realidade, e podem escolher querer saber ou olhar para o lado. De qualquer forma, não mudam a verdade.
No noroeste do Paquistão, que é a zona do planeta com mais alfabetismo no feminino, sofri as mais pesadas derrotas da minha vida. Trabalhava com uma obstetra espanhola hipercompetente e trabalhadora, a Patrícia, e juntos perdemos oito mulheres deitadas na mesa operatória, por hemorragia periparto, num mês. A esmagadora maioria dos médicos nunca viveu uma destas mortes em toda a sua carreira.
Vocês imaginam o que é ir a correr para o bloco com uma rapariga de 20 e tal anos a esvair-se em sangue, e cada um para seu lado, em modo fórmula 1, eu a tentar repor as perdas sanguíneas e a mantê-la viva, e a Patrícia a operá-la em minutos para lhe parar a hemorragia, e a determinado momento, eu ter de dizer: “Patrícia… pára. Ela morreu.” Conseguem imaginar? Conseguem colocar-se num destes momentos seja de que perspectiva for?
Certamente muitas mais foram as que morreram antes de chegar ao hospital, e tantas foram as que em equipa nós salvamos no limite. Literalmente, no limite, com perdas sanguíneas e níveis de hemoglobina que eu pensei não serem passíveis de serem revertidos, porque esta medicina no limite não vem nos livros.
No Sudão do Sul, a probabilidade de uma mulher morrer no parto é 1000 vezes superior aos números do primeiro-mundo, como os de Portugal.
Reanimação do recém-nascido. É uma área que até assusta a maioria dos médicos, porque um "mini-ser humano" mais pequeno que a minha mão depende de determinados actos, em segundos, que vão determinar uma vida para sempre. Em Portugal praticamente nunca pus em prática os meus conhecimentos sobre o assunto, posso dizer que vi uma ou outra vez neonatologistas a pôr em prática apenas os primeiros passos. Mas em missões humanitárias já reanimei centenas de bebés, desde a ventilação, às compressões cardíacas, a ter que colocar um cateter na veia umbilical para injectar adrenalina. Muitos salvei, outros tantos morreram-me nas mãos. Centenas!
É esta a medicina (ou ausência dela) que querem voltar?
Acreditem quando vos digo que na medicina já vi mesmo muita coisa, e o parto é o momento emocionalmente mais exigente para o corpo clínico que eu conheço. Quando corre tudo bem, que é a esmagadora maioria das vezes, é um mar de rosas, mas, quando há algum problema, em segundos a vida do bebé está em risco e têm de ser tomadas decisões vitais com emergência, em que todos os segundos contam e, como acabei de exemplificar, sem cuidados médicos especializados, profissionais e competentes, a probabilidade de uma mulher morrer no parto é muito grande.
E eu vou-vos dizer uma coisa, que certamente nunca imaginaram. Preparem-se bem! Sabem quem é que sabe mais sobre o momento do parto que envolve duas (ou mais) vidas? São os médicos obstetras, pois acumulam vidas de saber e prática sobre o assunto. E agora está na moda querer retirar as pessoas mais competentes do momento mais exigente, no qual a medicina mais cresceu em segurança na sua história. Querem retirar os médicos obstetras do parto.
Que fique bem claro, que tenho um enorme respeito e admiração pelos enfermeiros. Várias vezes escrevi que são a classe mais injustiçada em Portugal, e tenho uma divida de gratidão pelos enfermeiros, por tudo que o que me ensinaram, e pelas vezes em que fui eu o doente, que me leva a dizer sem hesitações que é revoltante ver greves de determinadas classes profissionais, quando os enfermeiros têm uma licenciatura, têm uma profissão de relevância vital na nossa sociedade, são o elo mais humano dos cuidados de saúde, trabalham por turnos o que destrói a saúde e as vidas pessoais de tantos, e ganham menos de 1000 euros.
E sei também que, se há área em que as especificidades dos conhecimentos e prática dos enfermeiros é de sobeja importância, é a obstetrícia, e que sem dúvida lhes confere uma enorme autonomia para a realização do parto “normal, sem complicações” e muito mais. Agora, retirar, segundo as normas da DGS, os médicos obstetras desta decisão eu acho um retrocesso civilizacional que vai causar mortes, e pior, abre todo este caminho maravilhoso da normalização da demonização dos médicos na medicina, que já é responsável por infinitas mortes evitáveis. Não por pobreza de recursos ou por falta de profissionais, mas pela facilidade com que a ignorância ocupa o lugar do conhecimento.
Eu não pretendo ofender ou atacar ninguém com as minhas palavras, mas se tivessem visto tantas mulheres e tantos recém-nascidos a morrer pela falta de cuidados médicos como eu vi, cuidados a que agora muitas pessoas querem renunciar por opção, certamente também não conseguiriam ser meiguinhos com as palavras…
“Enquanto uns não valorizam, outros imploram para ter!”
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras