Metade dos ginecologistas e obstetras em actividade estão fora do SNS
Até 2035 reformam-se mais de 350 ginecologistas e obstetras e formam-se 540 novos especialistas. O saldo é positivo, mas é preciso que quem se forma fique no SNS.
Entre 2023 e 2035 deverão aposentar-se mais de 350 especialistas em ginecologia-obstetrícia, mas, ao mesmo tempo, formar-se-ão 540, de acordo com as contas feitas pelo colégio desta especialidade da Ordem dos Médicos (OM) com base nos dados oficiais disponíveis. O saldo à partida é positivo. Mas é preciso assegurar que a maior parte destes novos especialistas fica no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e que, no entretanto, muitos dos médicos que já têm mais de 55 anos — e que, por isso, estão dispensados de fazer urgências — continuam a assegurá-las, sintetiza o presidente do colégio de ginecologia-obstetrícia da OM, João Bernardes.
Em Portugal não há falta de médicos desta especialidade em número absoluto, diz a OM. Como é que se explica, então, o actual cenário de carência destes especialistas e os problemas que condicionaram a actividade de várias urgências de obstetrícia nos últimos dias, com encerramentos e necessidade de encaminhamento de grávidas para outros hospitais? Por vários motivos, mas, desde logo, porque cerca de metade dos ginecologistas e obstetras inscritos na OM que ainda estão em actividade (12% têm mais de 75 anos) estão fora do SNS, mas também porque há “um desequilíbrio etário” nesta especialidade e assimetrias regionais, sintetiza João Bernardes, um dos autores do mais recente e completo retrato dos recursos existentes e das necessidades nesta área, sintetizado num artigo publicado na Acta Médica Portuguesa.
O envelhecimento deste grupo de profissionais é crescente (em 2020, 46% dos mais de 860 especialistas a trabalhar no SNS tinha idade igual ou superior a 55 anos, estando por isso dispensados de fazer urgências). Mesmo assim, nota João Bernardes, a maior parte destes médicos continua a trabalhar nestes serviços. Aliás, enfatiza, se de repente deixassem de o fazer, “só sete ou oito urgências teriam capacidade de resposta, mesmo com os tarefeiros [médicos contratados em prestação de serviços]”.
A equipa que foi olhar para as necessidades nesta área no horizonte temporal até 2035 cruzou vários dados oficiais (do Instituto Nacional de Estatística, da Administração Central do Sistema de Saúde, entre outros) disponíveis na altura (2018) e os resultados de um inquérito enviado aos directores dos serviços de hospitais públicos e geridos em parceira público-privada em 2020. Os dados não se alteraram substantivamente desde então, observa o presidente do colégio da especialidade. “Mas há alguns serviços que apresentam sinais de degradação mais acentuada do que estávamos à espera”, diz. Por exemplo, o hospital das Caldas da Rainha passou de “13 especialistas em 2018 para 10, em 2021”.
O que é fulcral é reter os novos especialistas que se formam em cada ano. Actualmente, são 45 por ano e “precisávamos que pelo menos 30 a 35 ficassem no SNS”, contabiliza. O problema é que, nos últimos anos, está aumentar o número de vagas que ficam por preencher nos hospitais públicos, muitos jovens médicos preferem ir trabalhar para o sector privado ou ficar a trabalhar em prestação de serviços nas urgências que estão depauperadas e necessitam de completar as escalas, que têm que ser asseguradas por um mínimo de profissionais. Outros emigram.
A agravar, também há “um número importante de especialistas com menos de 40 horas de trabalho semanal”. Um cenário que não é um exclusivo português. “São realidades existentes um pouco por todo o mundo que geram situações de carência relativa em muitos serviços nacionais, deixando-os com poucas alternativas para além de assegurarem o SU [Serviço de Urgência]”, destaca-se no artigo.
Medidas propostas à ministra
Por isso, é urgente avançar com as medidas que a OM propôs à ministra da Saúde na reunião de segunda-feira, diz João Bernardes e corrobora Alexandre Valentim Lourenço, presidente da Secção Regional do Sul da OM e director do serviço de ginecologia do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte. Primeiro, elencam, tem que ser revista a forma como são abertos os concursos – o último que a ministra Marta Temido anunciou, para recrutar 28 recém-especialistas, uma das medidas do plano de contingência para o Verão que anunciou, devia ter sido lançado há meses, frisam ambos.
“O concurso vai demorar no mínimo um mês a ser concluído”, só terá efeitos em pleno Verão, nota Alexandre Valentim Lourenço, que lembra que “nem representará um reforço efectivo, uma vez que estes médicos já estão a fazer urgências”.
Marta Temido “comprometeu-se” ainda a lançar programas de recuperação de listas de espera de cirurgias e ecografias - porque, com a necessidade de assegurar as urgências, há muito trabalho que fica por fazer nos serviços - e a retomar a possibilidade de os ginecologistas e obstetras se diferenciarem com subespecialidades, por exemplo em medicina de reprodução, medicina materno-fetal, em cirurgia oncológica, o que “atrairia muitos jovens para o SNS, mesmo sem melhores remunerações”, acredita João Bernardes.
A ministra ficou também de estudar a hipótese de alterar o despacho de 2011 que impede as unidades do SNS de contratarem os seus médicos em prestação de serviço depois de estes terem feito as 150 horas extraordinárias previstas na legislação. Uma medida do tempo da troika que gerou perversidades, porque levou à generalização do recurso a prestadores de serviços - médicos que trabalham à tarefa e são contratados por empresas de trabalho temporário e que ganham mais do que os médicos do quadro, acrescenta Alexandre Valentim Lourenço. “Ela tem que dizer ao ministro das Finanças que isto não vai representar mais despesa e que, a prazo, deixará de haver necessidade de tantas horas extraordinárias. Se a ministra não tomar decisões agora, só vai adiar o problema”, avisa.