A primeira mentira
Na noite de núpcias, não sabia o que fazer. Pressentia que tirar as roupas seria indispensável, por isso desapertou o vestido e assim se deixou ficar.
Perpétua nunca amou o marido. Limitou-se a casar com o primeiro que a pediu em casamento. Seis meses depois de um namoro fleumático, Armando perguntou-lhe se queria casar. Disse que sim, por educação. Nunca, até àquele dia, pensara sequer em casamento. Porém, não seria capaz de lhe fazer o contragosto; para mais, um jovem tão bem-apessoado, honesto, e bastante apreciado pelas colegas de escritório, embora, verdade seja dita, fosse seco e calado. Perpétua também não era mulher de muitas falas. A sua frugalidade reflectia-se no modo como se apresentava e na sua sintaxe. Tinha brio na sua discrição.
Na noite de núpcias, apesar de se ter informado sobre o que aconteceria, não sabia o que fazer. Pressentia que tirar as roupas seria indispensável e por isso desapertou o vestido pérola fluido, deixando-o tombar rente ao chão sobre os mocassins, e assim se deixou ficar – o corpo branco e imberbe, despido, tenso como uma tábua de engomar, ficou coberto tão-somente pela roupa interior de algodão.
Armando não reparou. Através da pequena janela do quarto de hotel, observava a paisagem e congratulava-se em silêncio – nunca antes vira neve. Atrás de si, Perpétua tremia ligeiramente, não de frio porque os aposentos do hotel estavam aquecidos, mas dominada por um nervosismo que desconhecera até à data. Nunca se despira à frente de um homem.
Como Armando se mantinha na mesma posição, virado para a janela, mais interessado na paisagem do que na esposa, Perpétua considerou voltar a cobrir-se e assim intentou. Baixou-se até aos tornozelos, quis recolher o vestido e tapar-se, embora não tenha ido a tempo, porquanto Armando virou-se, ainda com a cabeça na paisagem, exclamando "Como é branca e bela, meu Deus!".
Perpétua, desnuda e agachada, segurando o vestido junto aos calcanhares, ergueu-se num salto, tropeçando no tecido e indo embater com os dentes da frente no chão. Armando lançou-se para junto dela, e ajudou-a a erguer o rosto do tapete de pelo alto, talvez de urso. Da boca de Perpétua escorria sangue e, ao fazer um esgar de dor, Armando pôde ver-lhe a arcada superior sem um dente, o da frente. "Partiste-o, mulher." Perpétua levantou-se e cobriu-se o melhor que pôde com o vestido.
Ajoelhou-se sobre o móvel e viu-se ao espelho pousado sobre a poltrona verde. Assanhou os dentes e verificou a perda. Não disse nada, não chorou. "Vou lavar bem a boca até estancar o sangue." E dirigiu-se para o quarto de banho. "Tão feia, minha pobre consorte." Assim era, agora, a imagem da sua esposa. Não se revoltou com o incidente. Levantou-se, sacudindo o tecido na zona dos joelhos. Colocou-se de novo à janela, aguardando pela mulher.
Apreciava o panorama gélido diurno e reparou numa família anafada pelos trajes, a rir, entrando nas instalações do hotel — pai, mãe e criança aos pinotes. Olhou para o quadro familiar como um sonho. Perpétua não demorou a voltar, reposta da dor mas com o peitilho do vestido manchado de sangue. Armando, virando-se, pediu-lhe que sorrisse. A mulher obedeceu, exibindo um sorriso desfeado pela falta do dente. "Não fica assim tão mal, é uma questão de hábito", mentiu Armando.
Proferindo a primeira mentira pós-matrimonial. Perpétua reconheceu a mentira. Depois, o homem entrou devagar na cama, sem tirar as roupas. E gesticulando devagar com o antebraço, colhendo o ar na sua direcção, convidou-a a entrar no leito. A mulher penetrou na cama com a boca a saber-lhe a sangue, desconhecendo como era literal a expressão aplicada a uma virgem. O rompimento do hímen não passou de um vaivém doloroso e prolongado.
Afortunadamente, quando se tem várias dores, o cérebro selecciona sempre a pior e elimina as outras. O homem arfava em cima dela com a cabeça enterrada na almofada. Perpétua deixou-se ficar, aguentando a dor. Quieta, com os olhos fechados, enquanto passava a língua na gengiva descascada, descobrindo em si própria uma nova boca. O marido escarafunchava-a, zurrando de prazer. Armando demorou-se tanto que lá fora a neve escureceu.
Aquilo que começara por doer bastante tornara-se um membro massacrado e dormente. O homem poderia continuar o tempo que lhe aprouvesse. Perpétua tinha colocado os pensamentos na decoração: só faltavam os cortinados da biblioteca, não conseguia decidir-se por qual cor escolher. Quando aquilo terminou, Perpétua já tinha decorado várias casas na sua imaginação.
Armando deslocou a custo o corpo suado dentro das roupas, recostando a cabeça na almofada que sobrara na cama. Contudo, num ímpeto, que teve tanto de inesperado como de ousado, agarrou a mão de Perpétua e olhou-a comovido. "Espero tê-la engravidado." Perpétua teve, então, de inaugurar pela sua parte o embuste nupcial, estreando-se na inverdade. "Eu também."
Daquele dia em diante, a intrujice tornou-se a convenção no matrimónio.
Perpétua nunca teve filhos. Teve sorte.