Rezei ao Deus, que não sei se existe, para que não viesse ter comigo à cama
Não estava disposta a aceitar mais um evento para o meu somatório de infidelidades. Chamei um Uber e pus-me a caminho de casa, a noite estava arruinada e a única solução era tentar descansar.
Fomos juntas ao lançamento de uma revista literária para a qual tinha contribuído com uns quantos poemas. Estávamos no final do Verão, no início de Setembro, estava bronzeada e mais magra do que alguma vez estivera e sentia-me bonita. Tinha vestido uma blusa vermelha e uma saia preta justa, alisado o cabelo, que me dava a direito pelo queixo, e pintado os lábios da mesma cor da blusa. Uma noite de temperatura amena que se aconchegava à pele sem ser intrusiva, sentia-me leve e despreocupada, como há muito não acontecia.
Assisti ao lançamento da revista sentada ao colo dela por não haver mais lugares disponíveis na sala e senti a atenção de outros poetas e escritores sobre nós, parecíamos um casal a sério. Estávamos finalmente bem em silêncio nessa noite, com os corpos em contacto, depois de tanto ruído. Ao colo dela sentia o cheiro a perfume que emanava do seu pescoço, uma fragrância masculina forte, enquanto eram recitados ao microfone os poemas que podiam encontrar-se na revista.
Depois do lançamento seguimos a pé para o bairro mais célebre da cidade, graças à diversão nocturna. Íamos juntar-nos às minhas amigas que nos esperavam à porta de um bar. Quando chegámos, o ambiente era de festa. O primeiro encontro com as minhas amigas depois das férias de Verão, depois de alguns meses sem nos vermos. Apesar de vivermos na mesma cidade, cada uma tem a sua vida, e nos últimos anos os encontros tornaram-se cada vez mais difíceis e escassos.
Já de copo na mão e em plena cavaqueira, vi surgir por entre o ajuntamento de pessoas que atafulhava a rua estreita uma pessoa que me pareceu um rapaz de boné. Vi-o ir direito à minha namorada, empurrando sem querer duas das minhas amigas, alcançar e atingir o alvo. Varreu-a em menos de cinco segundos para uma zona da rua com menos gente. Sobressaltei-me. Pensei que se tratava de um assaltante. Estávamos numa zona onde costumavam ocorrer vários assaltos. Dirigi-me o mais rápido que pude com as minhas amigas para tentarmos socorrer a minha namorada.
Quando me aproximei o suficiente, percebi que o rapaz de boné era afinal uma rapariga que, por acaso, tanto eu como a minha namorada conhecíamos. Era a ex-namorada dela. Segurava a minha namorada com toda a força pelo decote da camisola e gritava-lhe insultos e obscenidades. Alguns relacionados comigo. Gritava e chorava como se estivesse desesperada e pronta para cometer uma loucura, daquelas que esperamos das pessoas românticas que sofrem de desgostos de amor. A minha namorada levou-a por um braço e vi-as desaparecer por entre a multidão.
As minhas amigas estavam chocadas e tiraram imediatamente conclusões que eu não estava capaz de entender. "Aquilo não é reacção de uma ex-namorada. É namorada dela! Não temos dúvidas." Eu tentava processar a informação e o estrago de uma escandaleira pública. Só queria sair dali. "Deixou-te aqui sozinha depois de te terem ofendido e foi com ela. É óbvio que têm uma relação."
Não sabia o que pensar. Não estava disposta a aceitar mais um evento para o meu somatório de infidelidades. Chamei um Uber e pus-me a caminho de casa, a noite estava arruinada e a única solução era tentar descansar. Poucos minutos depois de ter entrado em casa, recebo um telefonema dela a pedir desculpas pela cena e a perguntar se podia ir ter comigo para me explicar o sucedido. Acedi, como quase sempre fiz durante a nossa relação. Olho para esses momentos e sei agora o quão doente estava.
Assim que entrou em minha casa dirigiu-se de imediato à casa de banho e fechou a porta. Ouvi-a vomitar. Depois do som do autoclismo, percebi que estava a chorar. Não fui capaz de oferecer ajuda, permaneci sentada no sofá sem me mexer, tudo aquilo me parecia doentio. Quando saiu da casa de banho veio juntar-se a mim. Ouvi-a sem interesse nenhum. Apenas me queria ir deitar, aproveitar a noite sem a minha filha para poder dormir em paz um turno de seguida.
"Tive de ir com ela porque não está bem da cabeça. Tive receio que fizesse mal a si própria." Não acreditei nas coisas que me contou, aquele comportamento não fazia sentido. Nada naquela noite tinha lógica. A única coisa que me preocupava é que me tinha arruinado mais um serão que tinha sido tão auspicioso no início da noite. Mandei-a para casa. Sinceramente, nessa altura não fazia ideia onde vivia. Supostamente em casa dos pais, como dizia, mas eu tinha quase a certeza, especialmente depois daquele episódio de telenovela sul-americana, que morava ainda com ela. Não me interessava nada, sobretudo àquela hora da madrugada.
Fui-me deitar sem mais conversas. Sabia que corria o risco de ingressar em mais uma discussão circular que durava horas — era a sua especialidade. Deitei-me e rezei ao Deus, que não sei se existe, para que não viesse ter comigo à cama, que permanecesse no sofá. Esse Deus, que talvez exista, ouviu-me nessa noite. Apaguei como uma criança exausta das corridas. Sei, porque era raro nessa altura da minha vida, que dormi oito horas sem interrupção.