Que Ministério da Cultura é este?
A democratização da arte não pode estar apenas no discurso sobre a descentralização (tão importante) ou no elogio de autores que servem de bandeira ao país em inaugurações em datas simbólicas.
Se é verdade que devemos agradecer a um Governo de esquerda a ressurreição de um Ministério da Cultura (MC), também é verdade que nos podemos questionar acerca da sua capacidade actual para defender e dignificar o sector artístico. Desde que Pedro Adão e Silva assumiu o cargo, sucedendo a Graça Fonseca, notamos uma profunda alteração na forma como somos tratados enquanto artistas e profissionais que prestam um serviço público ao país.
A primeira evidência é a falta de comunicação com os agentes culturais. Os repetidos pedidos de audiência, a título associativo ou individual, ficam, na sua maioria, sem resposta, demonstrando uma indisponibilidade do MC para se sentar com quem representa.
A segunda evidência foi o percurso acidentado do último Concurso de Apoio Sustentado às Artes. Os resultados, com 55% de estruturas elegíveis não apoiadas por falta de verba (e não por decisão do júri, como afirmado pelo MC), revelaram uma disparidade gritante entre Apoios Bienais e Quadrienais. A decisão do ministro da Cultura de alterar o montante financeiro atribuído durante o processo de avaliação em curso provocou sucessivos protestos, recursos hierárquicos e processos judiciais contra o Estado, assim como um excesso de novas candidaturas ao concurso de Apoios Simplificados e a Projectos.
A terceira evidência é a falta de cumprimento dos prazos anunciados na Declaração Anual da DGArtes, um assunto que a anterior ministra da Cultura se empenhou em resolver e que se volta a sentir.
Este modus operandi do MC demonstra uma profunda falta de respeito pelo calendário das estruturas, pelos criadores e trabalhadores das artes e da cultura enquanto lhes exige que cumpram com rigor os contratos assinados com a DGArtes. O facto de não haver diálogo e de estarmos condenados à ineficácia da tutela deixa-nos sem voz: ora, por não conseguirmos chegar aos decisores de políticas culturais e propor soluções para problemas vigentes e crónicos; ou por não conseguirmos pôr em prática projectos artísticos que nos comprometemos a realizar devido à instabilidade das condições de trabalho alheias à nossa vontade.
É então legítimo questionar o papel deste MC que se recusa a ser um interlocutor, que se desresponsabiliza pelas suas falhas e que não avalia nem acompanha os processos que espoleta.
Que ministério é este que se recusa a dialogar com o sector que representa e que lhe responde apenas através dos órgãos de comunicação repetindo, como um mantra alienado e independente do teor das perguntas, a mesma resposta há seis meses, congratulando-se pelo maior reforço financeiro de sempre na cultura? Que ministério é este que sugere às estruturas artísticas que desmembrem a sua actividade e voltem a concorrer com projectos avulsos ao Programa de Apoio a Projectos, originalmente destinado a estruturas emergentes? Que afirma abrir o mesmo em Outubro de 2022 para o fazer a 29 de Dezembro? Que apenas permite candidaturas de projectos que se iniciem em Junho de 2023, ignorando o que acontecerá a todos os que se realizam de Janeiro a Maio desse ano? E que após o fecho dos concursos, informa a classe, displicentemente, como no seu discurso de 12 de Abril no Parlamento, de que os resultados para esses mesmos apoios só chegarão em Julho, na melhor das hipóteses, não havendo data prevista para o pagamento das primeiras tranches? E que alega, como justificação para esse atraso, um número elevado de candidaturas para avaliar, que, mais uma vez, só acontece por haver mais dinheiro para a cultura?
Ao contrário do que Pedro Adão e Silva afirma neste jogo perverso com o sector, não é por haver mais verba que há mais candidaturas: há mais candidaturas a Apoios a Projectos porque não houve verba para todos os projectos elegíveis nos Apoios Sustentados.
É ainda muito provável que o aumento de candidaturas em relação ao ano anterior não seja proporcional ao reforço orçamental nesta linha de financiamento (a DGArtes não tornou público o número total de candidaturas até à data, apesar dos múltiplos pedidos), caindo por terra o argumento do ministro da Cultura de que há mais verba para o sector.
A decisão de apostar nos Apoios Quadrienais em detrimento dos Apoios Bienais foi uma opção decidida à queima-roupa e sem espaço para reflexão sobre o seu impacto. Este reforço fora de horas provocou um efeito dominó no meio artístico que não está a ser travado por teimosia, demonstrando um desconhecimento profundo do território e das entidades de criação artística por parte deste ministro no exercício do seu cargo.
O facto de o passado concurso de Apoios Sustentados proporcionar às entidades apoiadas, em média, valores anuais mais elevados não é, por si só, um indicador de sucesso, o único argumento que Pedro Adão e Silva usa como resposta a todas as questões levantadas pelos vários agentes. Perante isto, e atendendo ao cenário actual, grande parte aguarda, de mãos atadas, por mais um desastre nos resultados deste concurso enquanto já se questiona acerca do cumprimento do aviso de abertura dos próximos Apoios a Projectos previstos para Outubro. Não é difícil imaginar que, sem a possibilidade de obter apoios públicos entre 2023 e 2025, irão continuar a desaparecer estruturas, não por falta de qualidade, não por falta de orçamento, mas por decisão do MC e má gestão da DGArtes.
O sector cultural artístico vive uma precariedade sistémica promovida pelo próprio MC que toma sucessivas decisões contra a classe que representa sem a consultar, promovendo uma insistente atmosfera de desmotivação e discriminação onde só sobrevivem as estruturas mais sólidas e os que não dependem financeiramente em exclusivo desta actividade.
Uma política cultural eficiente que queira combater esta precariedade começa ela própria por cumprir aquilo que exige do sector, compromete-se com prazos e promove a estabilidade: financeira, artística, temporal. Não são périplos pelo país que demonstram o verdadeiro interesse de um ministro da Cultura pela sua pasta. A democratização da arte não pode estar apenas no discurso sobre a descentralização (tão importante) ou no elogio de autores que servem de bandeira ao país em inaugurações em datas simbólicas. Está na acção diária de todos os agentes culturais, transversal a todas as regiões, em espaços institucionais e alternativos e no permanente diálogo com os espectadores, dentro e fora do país, fazendo circular ideias, reflexões, sentimentos de pertença e de esperança.
Choca-nos que o desaparecimento de grande parte de um tecido cultural que sobreviveu estoicamente a três anos de uma pandemia seja promovido pelo ministério que o representa.
Não podemos permitir que tal aconteça!
P’lo GUAC – Gente Unida pelas Artes e pela Cultura
Subscrevem:
AAVP – Associação Artistas Visuais em Portugal
EIAV – Estruturas Independentes para as Artes Visuais
Acção Cooperativista
Ao artigo foi acrescentada Acção Cooperativista