O caso húngaro e o futuro da liberdade de imprensa na Europa
Desde 2010 que Viktor Orbán tem embarcado numa aquisição maciça de meios de comunicação social sem qualquer reacção por parte daqueles que, em Bruxelas, afirmam defender os valores da Europa.
Em 2010, quando o parlamento húngaro apresentou uma série de restrições ao jornalismo independente, entre as quais multas por “cobertura desequilibrada”, através de uma nova lei sobre a comunicação social, houve protestos por parte de vários governos da UE, organizações internacionais e ONG que defendem a liberdade dos meios de comunicação social.
“Trata-se de uma ameaça directa à democracia”, afirmou Jean Asselborn, o então ministro dos Negócios Estrangeiros do Luxemburgo, insinuando que, ao introduzir uma lei tão restritiva, Viktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro, tinha adoptado o comportamento dos autocratas, a par dos “últimos ditadores da Europa”, Alexander Lukashenko, na Bielorrússia, e Vladimir Putin, na Rússia.
No entanto, apesar do ruído gerado, a lei foi mantida e o Fidesz, o partido no poder, liderado por Orbán, tem tido desde então carta-branca para pôr em causa os meios de comunicação independentes e críticos. Em consequência, o governo húngaro e os seus aliados empresariais privados controlam agora grande parte da indústria dos meios de comunicação social do país.
Uma década mais tarde, a Comissão Europeia enfrenta agora o contágio de outros países europeus. Em Setembro passado, o ramo executivo da UE publicou um novo regulamento conhecido como “Acto legislativo europeu sobre a liberdade dos meios de comunicação social”, criado para fazer face a este desafio. Quando a lei foi publicada, em Setembro, Věra Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia responsável pelo pelouro dos Valores e da Transparência, disse que este acto legislativo se situava algures no meio entre uma “bomba atómica” e uma “operação cosmética”.
Este acto legislativo é, sem dúvida, a iniciativa jurídica mais progressista em matéria de meios de comunicação social que o continente europeu já viu. Tratando-se de um regulamento do mercado interno, os legisladores nacionais não poderão alterá-lo ou manipulá-lo a seu gosto, como costumam fazer com as directivas – um tipo de acto legislativo que cada membro da UE tem de incorporar na sua legislação como bem entender. Este é um ponto positivo. No entanto, é pouco provável que este acto legislativo atinja as suas ambições, sobretudo em países com um histórico irregular em matéria de liberdade de imprensa, uma vez que não aborda a corrupção na atribuição de financiamento público.
A lei obrigará os meios de comunicação social a publicar dados sobre a sua propriedade e revelará como os governos tomam decisões sobre a atribuição de fundos aos meios de comunicação social, mas é pouco provável que tenha um impacto significativo, se é que tem algum impacto, nos suportes de captação pré-existentes dos meios de comunicação social, uma vez que não faz frente ao próprio mecanismo da captação: o sistema de corrupção financeira que os governos utilizam para influenciar os órgãos de comunicação social a alinharem-se com os interesses dos políticos no poder e dos seus aliados.
Sem disposições firmes sobre o financiamento, este acto legislativo será, em certa medida, silenciado em países onde a captação por parte do Estado esteja numa fase avançada e onde as mensagens do governo são disseminadas num espaço quase completamente livre de refutação.
Continua, ainda hoje, a ser surpreendente como é que chegámos a este ponto, no caso da Hungria. A realidade é que, desde 2010, Viktor Orbán tem sido autorizado a embarcar numa aquisição maciça de meios de comunicação social privados, sem qualquer reacção por parte daqueles que, em Bruxelas, afirmam defender os valores da Europa. Muitos dos amigos de Orbán, entre os quais Lőrinc Mészáros, são agora proprietários de uma série de meios de comunicação social em toda a Hungria: jornais, estações de televisão e canais de rádio. A Fundação da Imprensa e dos Media da Europa Central, que inclui alguns dos mais poderosos meios de comunicação social da Hungria, é dirigida por um aliado do primeiro-ministro Orbán e antigo ministro do Fidesz. Não é por acaso que um grande número destas empresas são agora as principais beneficiárias de dinheiros públicos para a execução de pedidos de execução governamentais noutros sectores, como a construção civil, e são inundadas com verbas publicitárias estatais atribuídas por organismos governamentais.
A falta de transparência na propriedade dos meios de comunicação social, a politização dos reguladores, os meios de comunicação social públicos controlados pelo governo e a distribuição injusta de dinheiro do Estado para consultadoria são problemas graves que afectam os meios de comunicação social. Mas o verdadeiro problema é a concentração desproporcionada de riqueza nos meios de comunicação social, criada pelo conluio entre governos e empresas – algo com que os meios de comunicação social independentes de toda a Europa se debatem há mais de uma década.
Para resolver este problema, o cordão umbilical triplo que liga o governo, os seus aliados empresariais e os meios de comunicação social tem de ser cortado e substituído por um sistema que introduza limites ao acesso das empresas aos fundos públicos e imponha novas regras de propriedade para as empresas de comunicação social.
Várias ONG, entre as quais o International Press Institute (IPI), pediram também à Comissão Europeia que acrescentasse um novo artigo ao referido acto legislativo para fechar “o acesso aos concursos públicos em sectores fora dos meios de comunicação social às empresas que detêm meios de comunicação social acima de um determinado limiar”. O IPI sublinhou que o sistema financeiro corrupto dos meios de comunicação social distorce o ambiente noticioso ao "criar um incentivo para que os proprietários dos meios de comunicação social adaptem a sua cobertura de forma a obter favores do governo".
A adopção dessas medidas seria um passo ousado, mas bem-vindo, por parte da Comissão, que poderia impedir que grupos poderosos ganhassem o controlo dos outros sistemas de comunicação social na UE. Mostraria também que a Comissão está disposta a intervir para salvar a liberdade dos meios de comunicação social na Europa, essenciais para o funcionamento da democracia, em vez de deixar as questões difíceis para um plano secundário.
Marius Dragomir é director do Media and Journalism Research Center, um grupo de reflexão centrado no estudo dos meios de comunicação social, do jornalismo, da política e da tecnologia
Tradução de Nelson Filipe