A Hungria ultrapassou os limites?
O governo iliberal da Hungria agiu com impunidade durante anos. A UE deve tomar medidas sobre a sua mais recente lei homofóbica ou arrisca-se a perder toda a credibilidade.
Oscar Wilde e Shakespeare proibidos nas aulas de Literatura Inglesa. Uma criança vítima de bullying na escola pela sua sexualidade e um professor incapaz de discutir o assunto com outros alunos. Aumento dos níveis de suicídio entre os adolescentes LGBTQI com medo de assumirem a sua orientação sexual. Estes são apenas alguns dos possíveis resultados da nova lei do Governo húngaro que proíbe a “promoção da homossexualidade ou mudança de género” a menores de 18 anos.
Desde que tomou posse, em 2010, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, encenou campanhas de ódio, promovidas pelo Estado, contra refugiados, ciganos e muçulmanos. Agora é a vez da comunidade LGBTQI do país lutar pelo seu direito a viver em paz dentro de um Estado-membro da UE. Será que um governo tão hostil a refugiados acabará por criar os seus próprios? Durante mais de uma década, os influentes em Bruxelas não conseguiram controlar os passos de Orbán. No entanto, a reprovação e os protestos internacionais da semana passada podem agora dar uma ajuda.
A situação na Hungria está a mudar, e rapidamente. A oposição – que, segundo sugerem algumas sondagens, está à frente – começou a unir-se numa aliança que poderia potencialmente depor Orbán. Assim, não é por acaso que de repente se evoca um novo “inimigo”, perante o qual só o Governo pode proporcionar a salvação. A justaposição de pessoas LGBTQI com pedofilia é um dos mais antigos argumentos homofóbicos utilizados. Em Dezembro de 2020, o Parlamento húngaro proibiu a adopção por casais do mesmo sexo. Isto aconteceu pouco depois de József Szájer, um eurodeputado próximo de Orbán, ter sido apanhado pela polícia de Bruxelas ao tentar fugir de uma festa sexual num bar gay durante o confinamento.
Muito do que se passa é por culpa da própria UE. Bruxelas é célebre por apresentar aos países candidatos todo o tipo de obstáculos, no que respeita a reformas políticas, durante anos antes da adesão. Mas assim que se juntam ao “clube”, os membros podem desmantelar a imprensa livre, colocar o poder judiciário nas mãos dos amigos e atacar as minorias sem sequer serem beliscados. Esta transformação autoritária na Hungria, que não é alvo de sanções, também inspirou países como a Polónia – e também a Eslovénia, que assume a presidência da UE no final desta semana – a verem que políticas intolerantes podem permanecer impunes. E, devido à unanimidade na tomada de decisões do bloco, qualquer movimento para punir um membro pode ser bloqueado por outro. Do mesmo modo, as tentativas para alcançar acordos comerciais cruciais e decisões de política externa comum podem ser levadas a cabo sempre que Orbán achar conveniente. O sistema de votação da UE não deve poder ser posto assim em prática.
A Hungria é um dos maiores beneficiários da generosidade da UE – fundos que estão sujeitos a um dos maiores números de irregularidades em qualquer Estado-membro, de acordo com o gabinete antifraude do próprio bloco – e, em troca, atinge com uma força demolidora os valores que a comunidade pretende manter. No entanto, a Comissão Europeia é obrigada a evitar qualquer discriminação baseada na orientação sexual na forma como estes fundos são utilizados, e tem poderes para suspender os fundos sempre que tal aconteça. Já o fez de forma limitada, bloqueando o financiamento da UE destinado aos municípios polacos que criaram “zonas livres de pessoas LGBT”. Se esta lei entrar em vigor, deverá rever-se imediatamente se todo o financiamento existente e futuro da UE, tal como o apoio aos sectores digital e audiovisual, está, de facto, a perpetuar esta discriminação. Esta é uma contrapartida necessária da acção judicial que a Comissão prometeu empreender. Numa nota mais positiva, deveria também conceder financiamento a organizações sem fins lucrativos que prestam assistência inestimável a jovens LGBTQI que precisem de ajuda face a esta hostilidade levada a cabo pelo Estado húngaro.
Já foi dito inúmeras vezes, mas este poderia ser o momento da verdade. E tem de ser. Não se trata um incidente isolado, mas de um projecto de uma década para construir um Estado de partido único ao serviço de uma agenda iliberal. 17 Estados-membros subscreveram uma declaração de repúdio à lei húngara como “uma forma flagrante de discriminação”. Os mesmos 17 países deveriam também preparar-se para votar sobre a situação do Estado de direito da Hungria em processos disciplinares que foram iniciados há mais de três anos. Deveriam examinar se o historial existente justifica a suspensão de todo o financiamento da UE, utilizando novos poderes que foram concedidos à UE no ano passado para proteger o Estado de direito. As instituições – Parlamento, Comissão e Conselho – parecem estar em raro alinhamento nesta matéria. Seria embaraçoso se nada acontecesse – como poderia a UE ter alguma credibilidade denunciando práticas discriminatórias semelhantes na Rússia, no Médio Oriente ou em África, se nem sequer consegue proteger os seus próprios cidadãos num dos seus próprios Estados-membros?
Orbán tem evitado um confronto com a liderança política da UE ao longo dos últimos 11 anos. Agora, a UE deve encontrar a coragem de tomar uma posição há muito esperada, proteger todos os seus cidadãos e parar de financiar a subversão dos seus valores.
Carl Dolan é diretor-adjunto do Open Society European Policy Institute
Tradução de Nelson Filipe