Amílcar Cabral na ONU e na OUA: a acção diplomática como arma

Os anos de Amílcar Cabral são marcados pela emergência de novos Estados africanos. Esta nova realidade modifica os equilíbrios de poder na ONU e traz à cena diplomática novas entidades, como a OUA.

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Amílcar Cabral na qualidade de secretário-geral do PAIGC, intervindo na IV Comissão da ONU, em 12 de Dezembro de 1962 Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso
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Amílcar Cabral desenvolveu uma intensa atividade diplomática em nome da luta contra o colonialismo português e em representação do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). A sua ação diplomática precedeu a luta armada na Guiné, que teve início em janeiro de 1963. Pelo menos desde 1958, Amílcar Cabral realizou viagens a vários países em busca de apoios para as suas reivindicações anticoloniais.

Além das viagens, a diplomacia encetada por Amílcar Cabral alimentou-se de trocas de correspondência com as mais diversas personalidades espalhadas pelo mundo. Uma terceira dimensão da sua atividade diplomática foi a participação em reuniões promovidas por inúmeras organizações internacionais. Finalmente, a atuação de Cabral passou igualmente por contactos com comités de apoio aos movimentos de libertação das colónias portuguesas que foram criados em países como os Estados Unidos da América, a França, os Países Baixos, a Itália ou o Reino Unido, para citar somente alguns.

A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização de Unidade Africana (OUA) desempenharam um papel fundamental na atividade diplomática de Amílcar Cabral. As duas entidades permitiram a presença nas suas sessões de organizações anticoloniais que reivindicavam representar as colónias portuguesas. Tendo realizado o primeiro depoimento em 1962, Cabral efetuou sete intervenções na ONU até ao seu falecimento, em janeiro de 1973. Muitas dessas intervenções tiveram lugar em países africanos porque os órgãos da ONU, nomeadamente o Comité de Descolonização, deslocavam-se frequentemente a África para realizar reuniões e ouvir representantes de organizações anticoloniais. Quando esteve presente em sessões em Nova Iorque, as viagens de Amílcar Cabral foram financiadas por países que apoiavam o PAIGC e que, nomeadamente, lhe forneciam os bilhetes de avião.

Cabral na ONU

Os depoimentos efetuados por Amílcar Cabral na ONU eram preparados pelo próprio, sendo que outros membros do PAIGC por vezes ajudavam na atualização dos dados ou apresentavam-lhe sugestões. Inicialmente, Cabral alimentou uma grande expectativa quanto à possibilidade de a ONU influenciar o Governo português no sentido da descolonização. Com o decorrer do tempo, notou-se, no entanto, um certo descontentamento, que se traduziu em críticas à organização.

Nas suas intervenções, Cabral informava os Estados-membros sobre a fundação, o programa ou a composição do PAIGC. Com grande insistência, procurou divulgar o seu projeto “de realizar, no quadro da unidade africana, a união orgânica dos povos da Guiné e das ilhas de Cabo Verde, com base em laços de sangue e em laços históricos entre esses povos” (Comité Especial para os Territórios Sob Administração Portuguesa, 44.ª Reunião, 5 de junho de 1962). Cabral também dedicou grande atenção à contextualização da situação nas duas colónias, fazendo ressaltar as difíceis condições de vida das populações. Desenvolveu junto da ONU uma justificação para a utilização da violência, entendendo que fora autorizado a recorrer a todos os meios para a liquidação do colonialismo e que estava envolvido numa guerra justa.

A luta armada era apresentada como uma consequência das ações de Portugal, com Cabral a referir: “O nosso povo tomou as armas para responder à violência criminal do colonialismo português e para se libertar do jugo estrangeiro, conquistar a sua independência e recuperar o direito inalienável à sua própria história” (Conselho de Segurança, 1632.ª Sessão, 1 de fevereiro de 1972).

Outro dos objetivos de Cabral foi promover o isolamento do Governo português. Ao denunciar as ações empreendidas pelo regime na Guiné no decorrer da Guerra Colonial, fez recorrentemente acusações sobre o bombardeamento de aldeias, a utilização de napalm, as vagas de prisões ou a prática de torturas e atrocidades contra as populações. Indicando que não pretendia unicamente a aprovação de resoluções contra Portugal, Cabral solicitou em inúmeras ocasiões a disponibilização de ajuda humanitária por parte da ONU e das agências especializadas. Para reforçar as suas afirmações, recorreu por vezes a relatórios e a outros documentos, bem como a exemplos concretos, com a apresentação de indivíduos identificados como vítimas do colonialismo português.

Fruto das intervenções de Amílcar Cabral, o PAIGC foi aquele que, entre o conjunto das organizações das colónias portuguesas, melhor utilizou o espaço da ONU para promover a internacionalização da questão colonial portuguesa. Inicialmente, um grande número de organizações interveio nas sessões da ONU, evidenciando a fragmentação da luta pela independência e a complexidade das suas agendas. Aproveitando as dificuldades para se determinar a exatidão das afirmações efetuadas por tais organizações, o Governo português conseguiu instigar vários grupos e personalidades, como a União Popular para a Libertação da Guiné Portuguesa (UPLG) e a Frente Nacional para a Libertação da Guiné dita Portuguesa (FNLG), a fazerem também depoimentos favoráveis ao colonialismo português, desacreditando as reivindicações anticolonialistas.

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Visita do Comité de Descolonização da ONU às regiões libertadas da Guiné-Bissau, no dia 8 de Abril de 1972. Distinguem-se José Araújo, Fidelis Cabral de Almada e Silvino da Luz, membros do Comité Central do PAIGC, e Kamal E. Belkhiria, Yutaka Nagata e Folk Lofgren, membros do Comité da ONU Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso

Com a aproximação dos finais da década de 1960, assistiu-se a uma diminuição assinalável do número de organizações das colónias portuguesas que faziam depoimentos na ONU, em virtude da desistência de algumas, como a Frente para a Luta pela Independência Nacional da Guiné dita Portuguesa (FLING) e o Movimento de Libertação da Guiné e de Cabo Verde (MLGC), e do quase desaparecimento dos grupos instrumentalizados por Portugal. Neste contexto, o PAIGC, dada a consistência do envolvimento de Amílcar Cabral com a organização, afirmou-se como o principal interlocutor da ONU para a Guiné e Cabo Verde.

A Organização de Unidade Africana

Relativamente às interações de Amílcar Cabral com a OUA, as informações existentes são incompletas e ainda não existem estudos sobre o tema. A OUA foi estabelecida em 1963 e tinha como um dos seus principais objetivos lutar contra os casos de colonialismo e discriminação racial que na época ainda existiam no continente africano. Logo após a sua fundação, decidiu apoiar moral, material e financeiramente a independência dos territórios colonizados, decretando o corte de relações diplomáticas com Portugal, a proibição de importações provenientes do país e o encerramento de portos, aeroportos e espaços aéreos a navios e aviões portugueses. Para fornecer apoio moral, material e financeiro aos movimentos de libertação, foi criado o Comité de Libertação, com sede em Dar es Salaam, na Tanzânia.

Amílcar Cabral participou em pelo menos nove sessões da OUA, designadamente em reuniões da Conferência de Chefes de Estado e Governo, do Conselho de Ministros e do Comité de Libertação, realizadas em diversos países africanos. Um dos momentos altos da participação de Cabral em reuniões da OUA teve lugar em junho de 1971, quando fez o discurso na sessão de encerramento da Conferência de Chefes de Estado e Governo em nome de todos os movimentos de libertação africanos.

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Cartão com ilustrações alusivas à cruzada anti-colonialista da OUA Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso

As intervenções na OUA tinham pontos em comum com as realizadas na ONU, embora também se verificassem especificidades. Tal como na ONU, Cabral procurava alertar os países africanos para a situação na Guiné e em Cabo Verde, denunciar os esforços portugueses para manter a sua dominação colonial e solicitar apoio material para a luta armada. Mas, na OUA em particular, Cabral procurou obter ganhos substanciais para o PAIGC, nomeadamente para assegurar o reconhecimento da sua liderança na luta pela independência da Guiné e de Cabo Verde, em detrimento de outras organizações anticoloniais que disputavam o mesmo espaço que o movimento, como era o caso da FLING. Do mesmo modo, também procurou transmitir, através de relatos detalhados sobre a situação da luta armada, a ideia de que o PAIGC estava constantemente a fazer progressos militares contra Portugal e a promover a eliminação da exploração colonial.

Não obstante as críticas que em determinados momentos proferiu contra o deficiente apoio da OUA ao PAIGC, Amílcar Cabral manteve uma presença assídua nas reuniões da organização. A OUA desempenhou um importante papel na legitimação do PAIGC. Em 1965, reconheceu-o como o único movimento legítimo que combatia o colonialismo português, o que permitiu ao partido beneficiar da ajuda fornecida pelo Comité de Libertação. O reconhecimento pela OUA teve impacto na ONU, com a Assembleia Geral a partir de 1972 a considerar o PAIGC como o único e autêntico representante da Guiné e de Cabo Verde.

As independências

Tanto a OUA quanto a Assembleia Geral da ONU aprovaram a proclamação unilateral da independência da Guiné, efetuada pelo PAIGC em setembro de 1973. Ambas as ações — a legitimação da PAIGC e a aceitação da proclamação da independência — acabariam por ter consequências após o 25 de Abril de 1974, quando Portugal decidiu iniciar negociações para a independência das suas colónias.

Com efeito, foi o PAIGC que esteve presente nas negociações em representação da Guiné e de Cabo Verde, sem que as outras organizações anticoloniais então existentes tivessem conseguido participar no processo. Por outro lado, enquanto no caso das restantes colónias houve uma negociação sobre a forma como a independência deveria ser alcançada, no caso guineense verificou-se um reconhecimento do Estado criado em 1973, com a transferência do poder para o PAIGC.

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Pedro Pires, comandante do PAIGC, condecora Horacio Sevilla-Borja, membro da delegação do Comité de Descolonização da ONU em visita às regiões libertadas da Guiné-Bissau, no dia 8 de Abril de 1972 Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso

Pela sua importância, as intervenções de Amílcar Cabral na ONU e na OUA assumem relevância não somente para as histórias nacionais da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, mas também para o estudo da descolonização portuguesa e do papel das organizações internacionais na dissolução dos impérios coloniais. Em particular, permitem argumentar que as independências das colónias portuguesas dificilmente poderão ser compreendidas sem equacionar a dimensão internacional.

Dada a insistência de Cabral na participação em fóruns internacionais e o cuidado demonstrado na realização de contactos com inúmeros países, comités de apoio e individualidades estrangeiras, tem sido entendido, inclusivamente, que por vezes a ação diplomática predominou sobre outras atividades do movimento, designadamente a luta armada.


Referências bibliográficas

Aurora Almada e Santos, Roteiro do Percurso Diplomático de Amílcar Cabral ao Serviço da Frente Externa do PAIGC in Itinerários de Amílcar Cabral, ed. Ana Maria Cabral, Filinto Elísio e Márcia Souto, Lisboa, Rosa de Porcelana, 2018, p. 23-119.

Aurora Almada e Santos, Amílcar Cabral e a Luta pela Independência de Cabo Verde na Organização das Nações Unidas in Por Cabral, Sempre, coord. Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Praia, Fundação Amílcar Cabral, 2016, p. 191-202.

Patrícia Godinho Gomes, Os Fundamentos de uma Nova Sociedade: O PAIGC e a Luta Armada na Guiné-Bissau (1963-1973), Torino, L’Harmattan Italia, 2010.


Aurora Almada e Santos é investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e do Laboratório Associado IN2PAST. É autora de diversas publicações, designadamente A Organização das Nações Unidas e a Questão Colonial Portuguesa (1960-1974).

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