João e Bernardo queriam tirar o “pimba” do baú e divulgá-lo online: assim nasceu o Pimbaú

João Kendall e Bernardo Machado dizem que o Pimbaú é um “trabalho antropológico, de conservação e de curadoria” — e o retrato de uma geração. Além do YouTube, já criaram um DJ set e um podcast.

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Os fãs do Pimbáu também enviam discos para Bernardo Machado e João Kendall, para alimentar o projecto DR

João Kendall estava no casamento de um amigo a discutir qual seria a próxima música do alinhamento do DJ. “Será que vai passar ‘pimba’?”, perguntou alguém. Um outro convidado — que João não conhecia — disse: “Tenho andado a ouvir um projecto fixe, de uns tipos que andam a partilhar umas cassetes de ‘música pimba’. Chama-se Pimbaú.”

Nesse dia, João, licenciado em História da Arte, percebeu que o projecto que criara com Bernardo Machado já não era só uma brincadeira. Na prática, João e Bernardo colocam no YouTube discos de “música pimba”, se virem que a obra ainda não está disponível online. Descrevem o projecto como um “trabalho antropológico, de conservação e de curadoria”, que começou quando se viram “contagiados pelo vírus José Pinhal”, ainda antes da pandemia. Apanhados no fenómeno, decidiram tentar “encontrar um novo José Pinhal”.

“No início, era só uma brincadeirinha de comprar uma cassete e, volta e meia, ir ouvi-la, rir, digitalizar e partilhar no YouTube”, confessa Bernardo Machado. “Depois começou a ser mais do que isso, de uma forma supernatural.” Hoje, o espólio do Pimbaú inclui nomes como o Agrupamento Musical Boeings, Ernesto Cedovim, Dino Meira, Paulo e Odette e Os Amigos da Coina.

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João Kendall e Bernardo Machado, no primeiro DJ set DR

Há um ano, tiraram o Pimbaú de casa e criaram um DJ set com a música que vão encontrando. Não é, porém, “uma questão central” no projecto: “O DJ set surge para tornar o projecto economicamente viável”, explicam. “Sendo mais viável economicamente, podemos concentrar-nos mais nisto. É mais por uma questão de gestão de tempo e de prioridades, não para enriquecer.”

Nas pistas de dança, notam que é um daqueles casos em que primeiro estranha-se e depois entranha-se: “O primeiro impacto, quase sempre é: ‘Quem são estes cromos?’”, diz Bernardo, entre risos. Passado algum tempo, geralmente, “acaba tudo a dançar”.

A assistir aos espectáculos costumam estar “jovens entusiastas de música popular portuguesa, mais ou menos ironicamente”. Muitos dos que aderem vão “arrastados pela onda do José Pinhal”, considera João Kendall: “É um tipo de público hipster-artístico-popular.”

O “pimba” ainda é maldito​

“O pimba tem crescido, mas não é tanto por causa de ciclos de saudosismo típico. A malta que vem a estas festas e a malta que vai ao Maus Hábitos ouvir o Marante não é malta que viveu o fenómeno pimba no seu ápice. Sem dúvida que [vão] pelo exótico, pelo ligeiramente irónico”, sentencia.

O ressurgimento não tirou, por completo, a conotação negativa associada ao termo “pimba”. O género, frequentemente desprezado ou ignorado — tanto pelo público em geral quanto por jornalistas e académicos da área — ainda não está livre do estigma. Bernardo ensaia uma explicação: a aversão não tem a ver com o género por si, mas com a tendência autodepreciativa da sociedade portuguesa em relação à música nacional.

A estética das cassetes/discos que compram é importante para João e Bernardo. DR
A estética das cassetes/discos que compram é importante para João e Bernardo. DR
A estética das cassetes/discos que compram é importante para João e Bernardo. DR
A estética das cassetes/discos que compram é importante para João e Bernardo. DR
A estética das cassetes/discos que compram é importante para João e Bernardo. DR
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A estética das cassetes/discos que compram é importante para João e Bernardo. DR

“Até há pouco tempo, havia aquela coisa de 'o que é português é mau, o que se faz lá fora é melhor'”, afirma. E se agora as coisas estão diferentes, a culpa é da música independente que se faz em Portugal: “Tivemos um movimento indie bastante forte que se calhar ajudou a habituar estas novas gerações a consumir coisas portuguesas e a apreciá-las. [A partir] dessa mudança, começou-se a olhar para trás e pensar: ‘Espera, aquilo que os nossos pais ignoraram completamente tem a sua piada’.”

Mesmo a forma como os criadores do Pimbaú olham para esta música foi mudando ao longo do tempo. Hoje, já não é só música de bailarico, mas uma ferramenta de análise antropológica: “É o retrato de uma geração. Uma geração retrata-se através dos artistas requintados, mas também através da arte popular. Só assim é que consegues ter um quadro bem feito de uma época e de uma sociedade”, afirma Bernardo Machado, que é mestre em Evolução e Comportamento Humano.

E, para os dois amigos, a solução para o estigma que ainda se associa a este género de música passa mesmo por “abraçar o nome, aceitá-lo e reabilitá-lo”.

Julgar uma cassete pela capa

Na hora de comprar cassetes e discos, a equipa do Pimbaú só tem dois critérios: ou conhecem o músico e sabem que o álbum não se encontra na Internet, ou a capa é “promissora” e “tem estética foleira o suficiente”. Por causa do lado arquivista do projecto, fazem sempre upload de discos na íntegra, evitando que caiam no esquecimento.

Na hora de escolher que cassetes comprar, João e Bernardo costumam guiar-se pela estética da capa DR
Na hora de escolher que cassetes comprar, João e Bernardo costumam guiar-se pela estética da capa DR
Na hora de escolher que cassetes comprar, João e Bernardo costumam guiar-se pela estética da capa DR
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Na hora de escolher que cassetes comprar, João e Bernardo costumam guiar-se pela estética da capa DR

Os fãs do projecto também o alimentam. Um dos maiores sucessos de visualizações do canal de YouTube é a cassete de Alfredo Soares, de 1990, que um amigo de Bernardo encontrou por acaso. Ana, a faixa de abertura, já foi ouvida por mais de 18 mil pessoas.

“Um amigo meu comprou um carro em Aguiar da Beira e o dono esqueceu-se de uma cassete lá dentro. [Depois de a colocarmos online] chegou ao público brasileiro, não sei como. Às vezes há umas senhoras a comentar, a achar que nós somos o Alfredo Soares. Temos recebido grandes elogios à pala disso”, conta Bernardo.

Nos DJ sets, mais do que no YouTube, fazem uma curadoria mais cuidadosa. “Tentamos sempre definir as músicas que passamos para espaços e públicos diferentes”, esclarece João Kendall. “Se temos um público mais internacional, estamos muito mais à vontade para passar canções desconhecidas, porque o pessoal vai vibrar de qualquer maneira”.

E prestam atenção às letras. Em alguns lugares, pedem-lhes que não passem músicas que falem de “bombeiros”, “mangueiras” e por aí em diante. Esta questão (e muitas outras) foram o ponto de partida do podcast.

“Parte do que nós começámos a fazer com o podcast é pensar toda esta cultura popular portuguesa e o pimba à luz do século XXI. E isso passa por todas essas questões do sexismo”, explica João. Bernardo continua: “O que devemos fazer com estas letras que hoje são, de alguma forma, inaceitáveis? Vamos cortar as partes inaceitáveis? Eu não me sinto bem com isso. Vamos assumir que é uma brincadeira parva e que nem merece ser levada a sério? É um dilema que temos...”

À data, o podcast tem três episódios, todos disponíveis no YouTube, com convidados a quem perguntam coisas como quem estaria imortalizado no Panteão do Pimba. O projecto vai evoluindo de forma orgânica e os planos para o futuro são poucos, mas ambiciosos: querem fazer uma tour de festas de Agosto”.

E apesar de reconhecerem o nível do desafio, o duo quer conquistar um público que (ainda) lhes é distante. “Infelizmente, ainda não chegamos ao velho da aldeia. Era uma coisa que queríamos muito fazer...”, confessam.

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