Das sombras à luz: os The National vivem
A banda esteve perto do fim, mas a amizade salvou-a. Ganhámos First Two Pages of Frankenstein, um conjunto de canções tão sombrio quanto optimista.
O nono disco dos The National quase não chegou a ser. First Two Pages of Frankenstein, que vê hoje a luz do dia, deixou a banda mais próxima da ruptura do que nunca. Ultrapassada a neblina, porém, nasceu um disco que oscila entre a depressão e a esperança, o clássico e o inédito, sempre com a identidade do grupo nova-iorquino intacta.
As nuvens escuras começaram a pairar quando o vocalista Matt Berninger iniciou uma luta com uma depressão e um burnout depois dos lançamentos de I Am Easy to Find, em 2019, e do disco a solo, Serpentine Prison, de 2020. A falta de motivação deixou Matt num bloqueio criativo, incapaz de escrever um verso que fosse. A certa altura, chegou a haver 25 músicas completas e polidas, sem poemas para as acompanhar.
“Normalmente, quando estou num lugar complicado, consigo escrever uma canção e isso ajuda muito a resolver a situação. Mas, desta vez, eu não queria. Estava desinteressado no meu próprio luto. Estava desinteressado nos meus problemas”, confessou Berninger à Uncut.
Não é segredo que o nascimento dos discos de The National costuma ser marcado pelo conflito (em 2007, não nomearam Boxer ao acaso). Mas em First Two Pages of Frankenstein a tensão tornou-se mais palpável: “Sempre ficamos ansiosos e discutimos bastante enquanto trabalhamos num disco. Mas esta foi a primeira vez em que pareceu que as coisas iriam mesmo acabar”, confessaram num comunicado.
Apesar de tudo, não viraram costas. Em vez de priorizar o álbum, a banda, que regressará a Portugal nos dias 5, 6 e 7 de Outubro, optou por trabalhar a amizade que os une desde 1999.
Quando a banda voltou à estrada, já em 2022, deixando para trás uma pandemia e o combate de Matt com a depressão, as letras também começaram a brotar. “Começou a escrever canções de rajada, quase de um dia para o outro”, disse Dessner. A comunhão criativa que (finalmente) regressava à banda levou a que até em palco nascessem canções, como é o caso de Eucalyptus. “Eu tinha enviado essa canção ao Matt há tanto tempo que me tinha esquecido dela. Mas ele escreveu uma letra e pediu-me para a tocar enquanto fazíamos o soundcheck [no Capitol Theatre, em Nova Iorque]”, explica Bryce, em nota de imprensa. “Ensaiámos duas vezes e tocámo-la para o público nessa mesma noite.”
Quando todas as peças da banda se alinharam, deixando o início tempestuoso para trás, a construção de First Two Pages of Frankenstein foi o “processo menos fracturado e conflituoso de sempre”, como contou Bryce ao The Washington Post.
No final, o disco que quase não existiu acabou com canções a mais. Por tocar em assuntos sombrios como o distanciamento, as relações fracturadas e a saúde mental, a banda decidiu cortar na duração. Com pouco mais de 40 minutos, é o mais curto nos 15 anos da banda. “É um álbum pesado emocionalmente e eu não queria que também soasse pesado por ser longo”, explicou Matt Berninger aos leitores do The Guardian.
Negrume e esperança
O título do disco surgiu de um hábito de Matt para encontrar inspiração: ler as primeiras duas páginas do livro de Mary Shelley, datado de 1818. O álbum parece ter sido construído de retalhos, como o próprio monstro de Frankenstein. Em vez de cadáveres, aqui usaram-se os outros discos. Do temor dançável de Alligator (2005), em Eucalyptus, chega-se à reclusão introspectiva do EP Cherry Tree (2004), em This isn’t helping, num ápice. As letras, em regra, são mais imediatas, como eram nos primeiros discos, mas a quota de versos crípticos à la High Violet, de 2010, também está cá.
Como o monstro, que era uma aberração com mente de criança, o nono longa duração dos National é, ao mesmo tempo, o disco mais sombrio e mais esperançoso da banda. Se a letra de Alien nos derruba, o ritmo de Tropic morning news levanta-nos de novo (para voltarmos, possivelmente, a cair).
A tensão que antecedeu o nascimento de First Two Pages of Frankenstein está bem estampada nos poemas e constrói uma narrativa mais convencional do que é habitual, que vai do obscuro ao luminoso. “Nem reparei que o estávamos a fazer, mas o disco segue uma jornada que tem que ver com deixar ir e depois voltar mais forte”, confirma Bryce Dessner.
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ARTIGO_SIMPLES
Send for me, onde desagua o alinhamento, é a canção mais luminosa das 11. Matt Berninger vai mais longe e considera, na nota enviada aos jornalistas, que é “uma das canções mais incondicionalmente positivas” que já assinou. A letra é dele, mas atribui parte dos créditos aos colegas: “Já escrevi no passado sobre quase tudo o que escrevo neste disco. Passei por uma longa fase em que sentia que não queria adicionar nada à história. Mas foram os outros rapazes que me encorajaram a continuar a escavar.”
Finda a exploração, Berninger criou alguns dos versos mais vívidos da discografia da banda. Ao ouvir “How you had me lay down for a temperature check/ With the cool of your hand on the back of my neck”, versos de New Order T-shirt, quase conseguimos sentir a mão fresca no pescoço. Em Alien, estamos lá, no banco de trás, quando Matt canta “There’s this one old idea I’m having/ Stuck in the car wash somewhere and you can’t stop laughing”.
Musicalmente, os ingredientes da bem-sucedida receita The National estão todos lá (da percussão imponente, ao baixo pulsante passando pelas guitarras ora cristalinas, ora cruas), mas, pontualmente, soam desinspirados, como em Ice machines e Send for me.
A banda também optou, pela primeira vez, por abrir a porta a músicos amplamente conhecidos, com quem partilham o protagonismo em quatro canções. E se em Once upon a poolside, a voz de Sufjan Stevens apenas se dilui na de Matt Berninger (é pena), a melancolia de Phoebe Bridgers acrescenta aos temas This isn’t helping e Your mind is not your friend um bem-vindo conforto.
É, contudo, em The Alcott, e nos versos intercalados com Taylor Swift, que está um dos maiores triunfos do disco. Swift escreveu os versos que canta e enviou-os à banda apenas 30 minutos depois do convite para participar na canção. “Toda a gente se apaixonou [pela letra] imediatamente. Parecia destinado a acontecer”, refere Aaron Dessner, em comunicado.
Two First Pages of Frankenstein é daqueles discos cuja dimensão é semelhante à da história que o precede, cujo contexto em que foi criado é indissociável da música. Um álbum que tem a personalidade da banda bem tatuada nas canções, mas soa diferente de tudo o que lhe antecedeu (para bem e para mal). O trabalho que podia ter posto fim à banda e que acabou por salvá-la ou, como disseram ao The Washington Post, mais do que isso: “Todos os discos salvaram a nossa banda de uma forma ou de outra. Mas este resgatou-nos mesmo.”