A notícia que não foi notícia
A malária é talvez o exemplo mais gritante da hipocrisia dos ricos. Mata as crianças dos pobres, por isso não queremos saber.
Já era um ritual repetido. Pressente-se um burburinho nos corredores e entra um grupo de homens pelo hospital adentro, em direcção ao pequeno e lotado pavilhão da pediatria, com uma criança pequena inanimada transportada numa maca improvisada, vinda de uma qualquer aldeia que fica a dias a pé. Vou-lhe chamar Johnny.
Eu fui de imediato ajudar a Marie, a pediatra suíça. O Johnny tinha 4 anos. Parecia mais morto do que vivo. Estava inconsciente e com crises convulsivas. A glicemia imensurável e o diagnóstico é quase óbvio: malária. São tantos e tantos, que o horror torna-se banal. Uma doença que se previne facilmente e se trata com meia dúzia de euros, quando avança sem barreiras, faz do plasmodium transmitido pelo mosquito anopheles o maior assassino de crianças do mundo.
Isto foi no Sudão do Sul mas podia ser em qualquer canto do continente africano. O que mais prejudica a minha actuação é o calor, a transpiração das minhas mãos que condiciona os meus gestos mais finos e a falta de competência dos recursos humanos locais que nem sonhavam com o que eu lhes estava a pedir, para me acompanharem naqueles minutos de stress, que já pareciam vir tarde para a esperança de o Johnny não ser mais um para a estatística. Cerca de 800.000 por ano. Ninguém sabe ao certo, porque são incontáveis mas todos eles têm alguém que sofre a inocência e a injustiça da sua morte.
O meu primeiro desafio é colocar um cateter venoso, para administrar glicose, medicação, eventualmente sangue, e soros. O Johnny tem as veias muito pequenas, e está gravemente desidratado e a convulsionar. Não é o mais correcto, mas nestas situações graves com crianças eu nunca calço luvas. Mesmo sabendo que não é mais correcto, a minha vontade de lhes dar uma esperança é bem maior do que o meu rigor nas minhas regras de segurança. Eu preciso de ter a polpa dos meus dedos com a sensibilidade imaculada para lhe palpar a veia que quero, e avançar sem o suor nas luvas para me atrapalhar. Enquanto alguém segura o corpo e as pernas do Johnny eu avanço para a veia femoral, que é na virilha e é umas das maiores e mais acessíveis do nosso corpo.
“Já temos veia. Avancemos!”. Reposição urgente da glicose no sangue, porque todos os segundos em que os neurónios cerebrais não recebem glicose, causam lesões irreversíveis das células cerebrais ou morte das mesmas. Tratamos as convulsões rapidamente, e o que se torna agora visível é que o Johnny está em gasping : respiração irregular, ineficaz e que é quase sempre um sinal de paragem cardíaca, por falta de irrigação sanguínea dos músculos respiratórios.
É um momento com muita gente à minha volta, mas ao mesmo tempo muito solitário. Tento misturar tudo o que sei, com o que sinto que é a dignidade humana, e domina-me a pergunta: “Para quê? Vai morrer e vai”, penso em silêncio. Mas a verdade é que não consigo, não avançar com as compressões cardíacas, e as ventilações que constituem a ressuscitação cardio-respiratória. Passados uns minutos de sentir o suor a escorrer-me pela testa para as mãos que faziam compressões cardíacas, a circulação do Johnny o seu padrão de ventilação normalizam e estabilizam.
Pela primeira vez desde que o Johnny chegou sinto que tenho tempo para recuar e pensar. Dou um passo atrás, enquanto vigio os sinais vitais, e apercebo-me de que não só toda a enfermaria de crianças e mães assistiram a este “espetáculo”, assim como toda a família do Johnny que fica petrificada pela preocupação com o seu menino, e pela agressividade visual e emotiva que é ver este tipo de cuidados médicos em acção.
Cruzo o meu olhar com a Marie e recuamos para trocar umas ideias. Ela tem muito mais saber em pediatria, e eu provavelmente mais em ressuscitação.
“Gustavo, obrigado por nos ajudares. O que é que tu achas que vai acontecer ao Johnny?”...
“Marie, na verdade nunca fui buscar uma criança tão ao fundo, por isso não sei. Mas o meu feeling é que vai morrer. Fica a aprendizagem, mas ressuscitamos um vegetal, que presumo que terá lesões neurológicas incompatíveis com a vida. Fizemos o que pudemos."
A malária é talvez o exemplo mais gritante da hipocrisia dos ricos. Mata as crianças dos pobres, por isso não queremos saber. Se por um lado, vos queria trazer com entusiasmo um dos maiores avanços da medicina e com mais impacto na humanidade nos últimos tempos, por outro, queria chamar a atenção para o facto de isto não ter sido notícia para “ninguém”.
Depois dos resultados altamente promissores do estudo feito em diferentes países africanos, a vacina da malária, conhecida como R21 ou vacina Oxford, vai se massivamente utilizada de imediato no Gana e na Nigéria, em crianças entre cinco meses e três anos, com a administração de três doses mais um booster passado um ano, apontando para uma eficácia na ordem dos 70 a 80%. O estudo ainda não terminou, mas tudo indica que a OMS e os restantes países africanos vão abrir o mercado a mais um milagre da ciência que salvará centenas de milhares de Johnnys todos os anos.
Diminuição da mortalidade, do absentismo escolar e laboral dos pais, e um impacto económico inestimável com o que se poupa em cuidados de saúde e se ganha em produtividade.
Eu agi de acordo com o meu treino e o meu conhecimento, na tentativa de salvar a vida ao Johnny, e permiti ao tempo colmatar a minha honesta ignorância. Não sabia se o que tinha feito era digno ou indigno para aquela criança e a sua família. Mas na minha ignorância nasceu o saber que é possível resgatar uma criança com malária quase para lá da linha da vida, aos ver, passados três dias, o Johnny sair do hospital a rir-se com os seus irmãos. Eu ganhei mais um cantinho de saber e uma riqueza no coração que nunca saberei descrever.
Espero que percebam que dentro da vossa ignorância é que reside a esperança e agora cresceu o saber que, com meia dúzia de euros, pode dominar o maior assassino de crianças e trazer para dentro do vosso coração uma vida, um próximo actor de mudança, um passo por um mundo melhor.
A morte ou a vida de Johnny nunca seria notícia, mas a possibilidade de salvar centenas de milhares todos os anos deveria ser notícia. Mas quem sou eu para dizer que salvar crianças inocentes é mais importante do que a polémica da TAP ou de um ministro qualquer?
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos Sem Fronteiras